Em uma subsidiária brasileira de uma empresa norte-americana, o presidente tratava sua secretária muito mal. Após anos lidando com isso, ela pediu demissão e, para vingar-se, o CEO a demitiu por justa causa.

Essa história de falta de ética, relatada por Isabel Franco, advogada especializada em compliance e anticorrupção da Koury Lopes Advogados, é mais frequente do que se imagina no Brasil. No entanto, a ex-funcionária pôde contatar o canal de denúncias da matriz, o que deu início a uma investigação, e o presidente foi demitido, mesmo sendo peça-chave do sucesso e lucratividade da filial brasileira.

Agora, pergunte-se: um final exemplar como esse aconteceria em uma empresa que não tivesse matriz estrangeira à qual recorrer? Afinal, a maioria dos executivos locais parece pensar que é impossível conciliar a ética com a busca das metas e dos lucros desejados pelos acionistas, lucros como os proporcionados pelo ex-presidente em questão.

Com o argumento “não podemos ser ingênuos”, os gestores estão acostumados a justificar propinas a instâncias governamentais, subornos de departamentos de compras, casos de assédio moral, contratação de fornecedores por condições impraticáveis etc.

Entretanto, conforme Franco e várias fontes entrevistadas por HSM Management, essas histórias começam a mudar no Brasil. “Estamos descobrindo que a conciliação de lucro e ética é possível, sim; basta que se enxergue o lucro como apenas uma das remunerações devidas, ao lado de outras como a prática de um preço justo para o consumidor, o pagamento de um salário justo ao colaborador e de valores justos ao fornecedor, o recolhimento dos impostos devidos, que beneficiam a sociedade”, resume Jean Bartoli, professor de filosofia da Fundação Instituto de Administração, ligada à Universidade de São Paulo (FIA-USP).

Ética x lucro
A ética só é realmente verificável quando o resultado financeiro está em jogo e é preciso fazer uma escolha, diz Jean Bartoli, professor de filosofia da FIA-USP

Com isso, a mentalidade ética tem tudo para ser uma demanda tão forte nas empresas quanto a mentalidade sustentável e, assim como nesta, não se pode disfarçar com um discurso; ela só é realmente verificável em uma situação em que o resultado financeiro esteja em jogo e exija uma escolha.

Professor Jean Bartoli, professor de filosofia da FIA-USP
Professor Jean Bartoli, professor de filosofia da FIA-USP

A boa notícia, como lembra Franco, é que mecanismos novos, como a lei anticorrupção, a delação premiada e a visibilidade de denúncias de corrupção em empresas de primeira linha do País, aceleram essa mudança de mentalidade.

“Anteriormente à Lei 12.846/13, por exemplo, as empresas não encontravam respaldo legal e normativo para criar um ambiente de alta ética corporativa, mesmo que quisessem. Agora, funcionários podem evocar a lei para rejeitar práticas impróprias”, conta a advogada.

Outros movimentos, entre eles a criação da Lei da Ficha Limpa e do Portal da Transparência, também impulsionam a mudança de mentalidade, completa Jorge Abrahão, diretor-presidente do Instituto Ethos.

Mudanças nas empresas

Um estímulo para a mudança de mentalidade é o cadastro Empresa Pro-Ética, criado pelo Instituto Ethos em parceria com a Controladoria-Geral da União, em 2010. Trata-se de um termômetro de ética corporativa brasileira, que dá visibilidade às empresas formalmente comprometidas com a ética da mesma maneira que o ranking Ethisphere faz no cenário global.

O sucesso do cadastro Empresa Pró-Ética decorre de seu rigor. Integrá-lo não é fácil e só existem 17 empresas cadastradas até agora, como explica Abrahão. As organizações precisam submeter-se a um rigoroso exame, provando que possuem uma série de ferramentas para prevenir a corrupção internamente (código de conduta, políticas de auxílio ao poder público no combate à lavagem de dinheiro e sistemas de controle interno e auditoria) e que elas são utilizadas.

Individualmente, várias empresas têm formalizado estruturas que incentivam o comportamento ético.

O Banco do Brasil (BB) é uma das organizações que vêm tomando uma série de medidas nessa área [veja quadro acima], o que o leva a integrar tanto o cadastro da Empresa Pró-Ética como o Ethisphere.

Augusto Rodrigues, diretor de comunicação empresarial e relações institucionais da CPFL Energia
Augusto Rodrigues, diretor de comunicação empresarial e relações institucionais da CPFL Energia

A mentalidade parece já ter mudado ali. “Achamos que ser ético é um bom negócio: os consumidores estão mais vigilantes, parte do valor das empresas está associada à reputação e a qualidade do trabalho do funcionário é altamente impactada pela correção da empresa”, afirma Carlos Netto, diretor de gestão de pessoas do BB.

A CPFL Energia é outro exemplo. Também cadastrada no Empresa Pró-Ética, ela descobriu como alinhar ética e lucro, segundo Augusto Rodrigues, diretor de comunicação empresarial e relações institucionais da companhia: buscando o lucro de longo prazo em detrimento dos resultados de curto prazo.

A AES Brasil passa filmes com dilemas éticos para provocar discussões

A CPFL mantém um sistema dedicado a gestão e desenvolvimento da ética que conta com diversos dispositivos, como um comitê geral de ética e conduta empresarial, comissões locais de ética, um dinâmico código de ética e de conduta empresarial, um programa de disseminação do pacto de ética e vários canais de comunicação específicos sobre o tema.

Também a AES Brasil, outro grande grupo do setor de energia no País, já crê que ética e lucro são conciliáveis. Segundo Claudio Scatena, gerente de compliance corporativo, há sete anos a AES Brasil faz um treinamento ético regular, debatendo dilemas éticos hipotéticos. Cada líder discute com sua equipe possíveis desvios e estimula cada membro a colocar seu ponto de vista livremente.

“Esse tipo de iniciativa faz os funcionários dos diversos níveis se apoderarem de um pensamento crítico que os estimula a apresentar suas preocupações quando percebem algo estranho, mesmo que de maneira anônima”, explica Scatena.

A 3M do Brasil, outra cadastrada no Empresa Pró-Ética, orgulha-se de ter um programa de compliance robusto e de longo prazo, que inclui desde avaliações de integridade e monitoramento constante dos parceiros comerciais até treinamento exaustivo dos colaboradores.

A advogada Isabel Franco, especialista em compliance
A advogada Isabel Franco, especialista em compliance

Para Rita Duarte, diretora jurídica da empresa, estruturas formais de ética contribuem para o desempenho das organizações diretamente ao mitigar seus riscos. “Entendemos que, por termos nosso programa, conseguimos fazer uma melhor gestão de riscos.”

Comunicação e liderança

Um bom termômetro do interesse crescente pelo assunto é que as empresas estão buscando formas de inovar em relação à discussão da ética.

O Banco do Brasil realizou ampla campanha de comunicação interna, sob o slogan “Ser ético é bom pra todos”, em que foram veiculados vídeos de animação sobre temas sensíveis, como compartilhamento de senhas, conduta em redes sociais, assédios e respeito às pessoas. “O sucesso foi tão grande que estamos fazendo uma segunda temporada”, afirma Netto.

A AES Brasil, por sua vez, tem utilizado temas do cinema para a discussão das questões éticas e dos valores da companhia. O programa batizado de “Dilema no Cinema” desenvolve debates por meio da exibição de trechos curtos de filmes e desenhos animados para grupos de até 30 pessoas.

A CPFL Energia lançou um programa que promove intensa comunicação interna sobre o assunto com os colaboradores, iniciado pela discussão dos executivos com o deputado federal Carlos Zaratini, relator do projeto da lei anticorrupção, e o filósofo Mario Sergio Cortella.

Muitas empresas optam por investir na construção de uma ética corporativa principalmente por meio das lideranças, segundo o consultor e professor de ética da FGV Eduardo Farah, e esse tende a ser um caminho mais fácil. “Elas perceberam a importância de ter um líder ético, pois ele gera encantamento, é fonte de confiança e vai ser um exemplo que as pessoas vão seguir.” Na avaliação de Farah, um líder realmente ético gera muito mais compromisso e engajamento em sua equipe.

Isabel Franco concorda, dizendo que nunca viu um caso de empresa ética sem uma liderança ética. Scatena, da AES Brasil, endossa que o envolvimento da alta administração com o tema tem sido fundamental para o aprendizado da ética na empresa.

Criar um ambiente em que as pessoas confiem umas nas outras estimula a ética; isso começa com a iniciativa da empresa de confiar em seu funcionário

Claudio Scatena, gerente de compliance corporativo da AES Brasil
Claudio Scatena, gerente de compliance corporativo da AES Brasil

Entre outros instrumentos usados para implementar a mentalidade ética na empresa são citados o programa de compliance com canal de denúncias, o ambiente definido pela confiança e o bom exemplo do comportamento ético empresarial. O último caso requer, por exemplo, rever quão ético é o modelo de gestão adotado pela empresa, como ressalta Luis Felipe Cortoni, consultor de recursos humanos da LCZ. Ele lembra que muitos modelos de gestão praticados não visam o bem das pessoas, como deveria ser em uma intenção ética, uma vez que a tensão que lhes é inerente vem produzindo doenças mentais e físicas.

O processo

Como funciona uma estrutura de ética em uma organização? Na AES Brasil, em geral, são feitas denúncias por meio dos canais de comunicação de ética e compliance e uma investigação é iniciada pela área específica.

Após a conclusão da investigação, os dados são levados para apreciação e deliberação do comitê de ética, composto pelo diretor-presidente da empresa e quatro vice-presidentes, além das lideranças de compliance e das pessoas envolvidas no caso.

Dessa reunião, que tem espaço mensal na agenda corporativa, saem decisões de mudanças e melhorias de processos, bem como as ações disciplinares aplicáveis.

Otimismo

A discussão sobre ética nas empresas está em estágio embrionário, mas certamente já começou. 

Dilemas do Banco do Brasil

Como todas as empresas, o Banco do Brasil enfrentou vários dilemas éticos em 2014, e ao menos dois podem ser citados. Um veio a público bem no final do ano: o BB teve de suspender os pagamentos, à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), referentes ao patrocínio do esporte por irregularidades detectadas pela Controladoria-Geral da União (CGU), condicionando sua retomada a medidas corretivas.

Carlos Netto, diretor de gestão de pessoas do Banco do Brasil
Carlos Netto, diretor de gestão de pessoas do Banco do Brasil

O episódio mostrou quanto é difícil controlar problemas éticos em fornecedores. O Código de Ética do BB prevê ações em relação aos fornecedores no âmbito da pluralidade da concorrência e do cumprimento de obrigações legais (trabalhistas, fiscais, previdenciárias), mas não vai além disso. Segundo a assessoria de imprensa do banco, ainda assim “parte das questões apontadas pela CGU havia sido previamente identificada pelo BB” e medidas corretivas constam de aditivo contratual que o banco negociou com a CBV, “porém sem resposta final por parte da Confederação”.

Outro dos dilemas foi o de que algumas das denúncias que chegavam à ouvidoria interna não correspondiam a um grave desvio de conduta de um funcionário, e sim derivavam de conflitos interpessoais. Graças à sugestão de um dos colaboradores, o banco implementou em 2014 a Mediação Restaurativa, viabilizando a retomada do diálogo entre as partes em conflito, com a atuação de um mediador. Às vezes, a ética também está em limitar excessos no uso do sistema de controle da ética.

Um dilema da CPFL

Um dos desafios éticos vivenciados pela CPFL Energia foi em relação à conduta de um de seus funcionários em uma rede social, denunciado por um cliente da companhia por e-mail ao comitê de ética. O cliente informou que a atendente da empresa postou no Facebook mensagens ofensivas contra os clientes que têm dúvidas sobre a cobrança da tarifa verde pelas distribuidoras do grupo.

No mesmo dia em que teve conhecimento do fato, a empresa pediu ao supervisor da conta “redes sociais” que fizesse uma varredura em todos os comentários postados pelos colaboradores e os chamasse para um feedback, e que solicitasse a exclusão do comentário ofensivo.

Embora todos os funcionários já tivessem passado por reciclagem do manual de conduta de uso das redes sociais, repetiu-se o curso. Realizou-se também um trabalho de reorientação à atendente que postou o comentário ofensivo. Por fim, o cliente foi informado sobre as medidas adotadas pela empresa.

Um dilema de uma PME

A ética pode ser mais fácil de sustentar em empresas de pequeno porte, por causa do contato próximo com os donos. Para Felipe Queen, sócio da FM Com, agência de comunicação com 25 colaboradores, a proximidade tem prós e contras. “De um lado, os funcionários veem diariamente como eu e meu sócio agimos e nosso comportamento torna-se exemplar para eles, mas, de outro, essa relação de quase amizade que se estabelece pode também gerar algum desvio inconsciente de caráter que leva o funcionário a fazer o que não deve.”

A agência tem a ética afirmada como seu valor principal, o que, na avaliação de Queen, contribui para construir um ambiente de trabalho saudável, no qual impera a confiança, com reflexo nos negócios. Isso não quer dizer que os problemas éticos não surjam. Uso pessoal do e-mail corporativo, inventar uma desculpa para sair durante o expediente para realizar uma entrevista de emprego, ficar até mais tarde no escritório para imprimir longos trabalhos da faculdade ou para desfrutar de benefícios como o jantar e o táxi que a empresa oferece são algumas das questões éticas que surgem no dia a dia. “Nós monitoramos sempre e, quando percebemos um desvio, conversamos individualmente com o colaborador e pedimos que não volte a acontecer.”