Um estudo sobre liderança organizacional publicado em 2006 por Jeffrey Pfeffer, de Stanford, mostrou que pessoas comuns em empresas extraordinárias normalmente têm um desempenho muito superior ao de pessoas comuns em empresas comuns.

A pergunta que surgiu com isso foi: o que as organizações extraordinárias têm que as diferencia e permite que tirem o melhor das chamadas “pessoas comuns”? Muitos vêm buscando a resposta desde aquela época e, quase dez anos depois, em 2015, uma das mais surpreendentes foi oferecida pelo professor Jules Goddard, da London Business School. Segundo ele, empresas extraordinárias conseguem criar uma “comunidade moral”, e esta “confere um caráter sagrado a certas formas de comportamento sacrificial, em que noções calculistas de relação custo-benefício não têm vez”.

O que é uma comunidade moral? De modo breve, é um arranjo social que vai além das relações “ganha-ganha”. Como diz o sociólogo francês Émile Durkheim, “moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a regular suas ações por algo que não seja o próprio egoísmo”.

Goddard aprofunda: a comunidade moral é um espaço que permite ao indivíduo não só produzir e gerar riqueza, mas responder a suas três necessidades mais profundas: a de sentido ou propósito, a de identidade e a de pertencimento a um grupo. A organização que consegue constituir uma comunidade moral, explica o autor, constrói suas bases sobre um mix de capital humano (talentos dos colaboradores), social (relações de reciprocidade, trabalho em equipe e confiança, permitindo que esses talentos sejam agrupados e aplicados a projetos coletivos) e moral (que estabelece padrões comportamentais acima da média).

Coincidentemente, a comunidade moral não contribui só para o desempenho, como mostrou Goddard; ela também parece ser o ambiente mais indicado para exorcizar os demônios da corrupção que ameaçam boa parte das empresas brasileiras desde que a Operação Lava-Jato envolveu ícones da gestão em suas investigações.

Dan Ariely, da Duke University: “A moral nos lembra quem queremos ser, enquanto a corrupção ocorre quando nós não nos importamos com nada”
Dan Ariely, da Duke University: “A moral nos lembra quem queremos ser, enquanto a corrupção ocorre quando nós não nos importamos com nada”

Dan Ariely, professor de psicologia organizacional e economia da Duke University, que tem se dedicado a pesquisas sobre corrupção nas organizações e nos governos, é um dos que trazem à tona a questão moral para as companhias. Em entrevista a HSM Management, ele faz uma oposição didática: “A moral nos lembra quem queremos ser, enquanto a corrupção ocorre quando nós não nos importamos com nada”. Portanto, para prevenir e combater a corrupção, as empresas têm de fazer uma pergunta de ordem moral: “Quando as pessoas se sentirem tentadas pela corrupção, o que podemos fazer para que se lembrem de quem querem ser?”.

No artigo Management and moral capital: the corporation as a moral community, Goddard explicita a complexidade que é converter uma empresa em uma comunidade moral. Ele atribui isso sobretudo ao fato de as pessoas de hoje precisarem muito mais do trabalho do que as gerações anteriores, que se apoiavam mais na religião, na família e na comunidade social. “O trabalho se tornou o mais importante ‘marcador’ de quem o indivíduo é”, escreve Goddard.

Então, quando o trabalho frustra as expectativas das pessoas, o desapontamento delas é muito grande e pode se traduzir tanto em desmotivação como em corrupção.

Ambientes ruins

Um ambiente corporativo não precisa ter desvios de milhares de dólares para ser considerado corrupto. Se tem furtos e mentiras repetidamente, ele já é – apenas o valor de corrupção transacionado (ainda) não subiu. Para construir um ambiente mais à prova de corrupção, é preciso entender, em primeiro lugar, onde e como nasce o desapontamento.

Organizações com elevadas doses de competição interna estão entre seus berçários, por exemplo. Lamar Pierce, professor da Olin Business School, de St. Louis, EUA, afirma que, quando são submetidas a um ambiente competitivo, as pessoas vão mentir se a única maneira de vencer for mentindo. E assim começa a corrupção.

Outro ambiente que favorece o desapontamento (e a corrupção) é aquele onde a desconfiança impera. Pierce estuda, por exemplo, o que acontece Dan Ariely, da Duke University: “A moral nos lembra quem queremos ser, enquanto a corrupção ocorre quando nós não nos importamos com nada” com as organizações com muitos sistemas de monitoramento. “Se o chefe coloca câmeras em todo lugar e lê os e-mails dos funcionários, isso os desmotiva” – e pode levar à transgressão.

Há também processos que favorecem os desvios, como conta Nina Mazar, parceira de Dan Ariely em boa parte de suas pesquisas e professora da Rotman School of Management, da University of Toronto. Ela conduziu uma série de estudos de psicologia organizacional para descobrir por que as pessoas mentem ou cometem pequenas corrupções. Observou, por exemplo, que, quando a pessoa é obrigada a assinar um documento, como uma declaração de bens à alfândega, antes de começar a preenchê-lo, a chance de ela mentir é menor do que se tiver de assiná-lo no final.

“Da perspectiva psicológica, há motivos para acreditar que é mais fácil mentir quando você não assina nada antes. Depois, tem maior chance de mentir e, assim, tende mais a ceder à tentação da corrupção”, explica Mazar. “Se eu não preciso preencher nenhum formulário antes, só lê-lo, posso dizer a mim mesma que não o li. Porém, se me pedirem para colocar que não tenho nenhum bem a declarar depois, quando eu já sei que estou escrevendo uma inverdade, isso me é psicologicamente mais difícil de fazer.” No caso desse processo, a ordem dos fatores faz toda a diferença para o resultado.

Goddard também aponta práticas e processos que danificam o capital moral de uma empresa –de acordo com ele, 20% de práticas respondem por 80% dos danos, seguindo a regra de Pareto. “São as políticas, sistemas e processos que têm um efeito deletério sobre as relações de confiança, generosidade e boa-fé entre os colaboradores em geral.”

Há três conjuntos de práticas disseminadas que fazem mal:

 • Comprometimento. É o processo pelo qual indivíduos, equipes ou unidades de negócios são chamados a se comprometer com um conjunto de resultados em um intervalo de tempo. Essas promessas são feitas normalmente sob pressão. “Ao esperar que as pessoas mantenham promessas que não fizeram espontaneamente, o processo se esvazia de integridade. Uma promessa só faz sentido quando as condições para que seja cumprida estejam sob o controle de quem faz a promessa”, explica Goddard.

• Incentivo financeiro. É o uso de “cenouras” e “chicotes” combinados para motivar os funcionários a se comprometer. Goddard afirma que, na prática, muitas vezes correspondem a suborno. Além disso, embutem a suposição de que as pessoas são lentas e indiferentes e que, sem um bônus, não fazem o esforço nem têm o foco e a disciplina necessários para atingir as metas. “Planos de incentivo baseados apenas em recompensas externas, como bônus financeiros, corroem as virtudes do respeito interpessoal.”

• Avaliação. Atualmente, tudo é julgado, e, na maioria das empresas, os erros tendem a não ser as iniciativas que foram tomadas e deram errado, mas as que não foram tomadas (talvez por medo do fracasso) e que, se tivessem sido, talvez dessem certo. “Se, como funcionário, sou tratado o tempo todo como desonesto, cínico, egoísta, indiferente e indigno de confiança, a probabilidade é que eu atenda a essa expectativa – e, ao fazer isso, legitime o processo que achava insultante.”

Por trás desses processos e práticas, explica o pesquisador, está a abordagem instrumental aos colaboradores. As pessoas são tratadas como fatores de produção, ativos, meios para um fim. Nada destrói mais o capital moral do que tratar seres humanos como “recursos”.

Muitas vezes, os incentivos do tipo cenoura ou chicote correspondem a uma prática de suborno

Como criar uma comunidade moral

De que modo evitar um ambiente propício à corrupção? Pierce, que atua mais diretamente com empresas, explica que os gestores devem, antes de mais nada, ser transparentes sobre tudo, comunicando-se muito com os funcionários.

A transparência vale até para as situações de desconfiança. Por exemplo, quando implanta um sistema de revista ou de câmeras, a organização deve explicar de maneira transparente e exaustiva por que está fazendo isso, ou os colaboradores interpretarão a situação como uma desconfiança generalizada e o remédio será pior do que a doença.

Para construir uma comunidade moral, Goddard também sugere transparência – todos na companhia devem conversar abertamente sobre tudo. Aliás, transparência é métrica. “Se é arriscado para a pessoa dizer o que pensa, então não se trata de uma comunidade moral”, afirma. Onde há essa transparência, não é necessário trabalhar com coaching de executivos, acrescenta. Tanto ele como Pierce acreditam que é preciso derrubar a hierarquia rígida e o excesso de controle para haver transparência. 

Goddard propõe trocar as iniciativas de responsabilidade social – equivalentes a admitir que o estado natural dos negócios é de expropriação e exploração e que agora é hora de expiar os pecados – pelo aumento de qualidade do produto ou serviço.

Em termos bem práticos, Pierce sugere localizar e monitorar de perto onde está o dinheiro e quem concentra poderes sem controle. “Pessoas independentes ou tão conectadas a ponto de ninguém desafiá-las são as que têm probabilidade de serem corruptas.” Essa marcação não é cara nem difícil de fazer.

Goddard afirma, por fim, que o capital moral quase não tem relação com declaração de valores corporativos ou boas intenções dos líderes. O modo de desenvolvê-lo é o cultivo diário de “virtudes”. Como recomenda o modelo aristotélico de desenvolvimento moral, todos devemos imaginar, em cada situação, o que uma pessoa virtuosa faria. “Isso é contagiante para criar a comunidade moral.”

Ariely concorda: o ambiente moral é, principalmente, fruto da educação das pessoas para reagir aos momentos de tentação, e as empresas devem permanentemente pensar no que podem fazer para que as pessoas se lembrem de quem querem ser.

Maioria ética

Nina Mazar é otimista. “Verificamos em centenas de estudos que a maioria das pessoas é ética, para nossa surpresa e alegria. Aparentemente, há uma moral interna que as ‘freia’.” A tarefa acaba de ficar mais fácil.

Benchmarking com religião

Para criar uma comunidade moral na empresa, a religião pode servir como modelo. Foi uma das poucas instituições a entender quanto o contexto ou o ambiente influenciam o comportamento das pessoas e criou ritos e rituais que, praticados regularmente e transformados em hábito, têm um efeito edificante sobre o comportamento moral dos crentes. “Ao rezarmos pelos outros, ficamos mais gentis; ao enumerarmos as bênçãos, mais humildes; ao cantarmos com os outros, nos tornamos mais próximos deles; ao darmos graças, mais alegres; ao pedirmos perdão, mais misericordiosos; quando refletimos sobre a virtude, gradualmente refinamos nossa sensibilidade moral”, explica Jules Goddard, de formação cristã. 

Dan Ariely, adepto do judaísmo, acredita que as organizações e pessoas só conseguem mudar para melhor quando reconhecem a culpa e pedem perdão por seus erros, como na religião. “O problema é que ninguém quer fazer isso, apesar de ser extremamente importante.”

No judaísmo, inclusive, há o Dia do Perdão, Yom Kippur, em que toda a comunidade pede desculpas pelos erros cometidos no ano anterior. “As pessoas têm dificuldade em admitir erros, mas sem isso não se segue adiante.” Para Ariely, a não admissão de culpa e a inexistência de um pedido de perdão talvez sejam as reais explicações da rejeição à presidente Dilma Rousseff e de o Brasil não ter avançado o esperado depois do fim do regime militar.

O problema do Brasil

Imagine que há um tratamento A e um B para um paciente e que seu médico ganhe mais dinheiro ao escolher fazer o B; o que vai prevalecer? Esse é um exemplo típico de conflito de interesses, algo que acontece quando as partes querem coisas diferentes e incompatíveis. Para combater a corrupção, o especialista em economia comportamental Dan Ariely sugere focar os potenciais conflitos de interesses.

“Os conflitos de interesses são muito mais perigosos do que pensamos, porque não percebemos como nos afetam; conseguem distorcer até sentimentos nobres como a amizade – quando fazemos algo errado para favorecer um amigo”, afirma.

A interação entre empresas e governos costuma ser especialmente corroída por conflitos de interesses, segundo o pesquisador, e esse seria, a seu ver, o principal problema do Brasil – a ser atacado preventivamente.

Então, nossa corrupção não é cultural? “Não. Vocês têm muita corrupção, não há dúvida, mas não são diferentes da maioria dos países. A corrupção não é a espinha dorsal da sociedade brasileira a ponto de vocês não poderem confiar em ninguém. Tenho certeza de que, se eu deixar minha carteira cair no chão aqui, a probabilidade de recuperá-la é a mesma que nos EUA”, responde Ariely.

De acordo com seus estudos, poucas regiões específicas têm um real viés cultural pró-corrupção – entre elas, a África do Sul, talvez a China. “Os sul-africanos de fato não se importam em subornar um policial e, na China, ouvi um boato de que os pais protestam pelo fato de as escolas não deixarem seus filhos colarem nas provas.” (ASG)

Você aplica quando...

... controla onde nasce a corrupção e onde estão as “oportunidades”.

... decide transformar a empresa em uma comunidade moral, com a transparência como princípio e mudando processos e práticas.

... faz ativamente uma educação para virtudes, a fim de virarem hábitos.