Uber, o aplicativo de US$ 51 bilhões, é só a ponta de uma geleira que descongela a todo o vapor: será a economia compartilhada uma resposta para as crises que vivemos?
Vale a leitura porque...
... nem todas as mudanças em curso têm a ver com a desaceleração da economia brasileira (ou com a Grécia). Parte se deve à destruição criadora.
... a economia compartilhada é um dos resultados dessa destruição criadora.
.... as regras do novo jogo precisam ser conhecidas: incluem mais comunidades de relacionamento e menos barreiras de entrada.
Levantamentos globais apontam a criação de três startups por segundo. E, embora mais de 90% dessas empresas deixem de existir em pouco tempo, 102 já atingiram um valor de mercado superior a US$ 1 bilhão cada uma.
Surpreso? Pois o que mais me surpreende na avalanche empreendedora são duas empresas que encabeçam a lista dos chamados unicórnios, diferentes de tudo o que aprendemos nas escolas de negócios: o Uber, plataforma de transporte individual avaliada em mais de US$ 51 bilhões, e o Airbnb, plataforma de hospedagem de mais de US$ 25 bilhões. Em comum, as duas não têm ativos próprios.
Essas companhias nos dão uma pista de como a destruição criadora de Schumpeter está reorganizando a economia. Emerge um novo modelo com foco em aproveitar capacidades ociosas compartilhando-as, proporcionando um aproveitamento maior não apenas daquilo que se possui, como também daquilo a que se tem acesso.
Das três empresas do topo da lista dos unicórnios (startups com mais de US$ 1 bilhão de valor de mercado), duas são ícones da economia compartilhada
"Essas empresas economizam por um lado, ao usarem capacidades de outros, e também faturam mais, pois aumentam muito seu alcance e distribuição”, resume a norte-americana Robin Chase, ícone da assim batizada “economia compartilhada” que recentemente lançou Peers Inc., que pode se tornar uma bíblia sobre o assunto [o livro será publicado no Brasil em novembro pela HSM].
O compartilhamento de ativos não deveria ser uma surpresa; sempre existiu na economia, segundo ela. Apenas a tecnologia atual está mudando a escala em que ele acontece. Chase foi uma que usou a tecnologia para promover compartilhamento – de carros, em seu caso. Sua já famosa ZipCar revolucionou a locação de automóveis nos EUA até que a gigante Avis a adquiriu.
A empreendedora não tem dúvida: enquanto ficam reclamando do Uber, a economia compartilhada se consolida. Ela expõe seu argumento: a construção de negócios com base em comunidades de relacionamento, envolvendo pessoas como consumidoras e como produtoras, já consiste em um padrão reconhecível em diversos segmentos e, em grande medida, é replicável.
O modelo é replicável principalmente porque a lógica do mercado vem se alterando. “Com a tecnologia, em especial a internet, fica contraproducente para as empresas tentarem erguer barreiras de entrada e induzir algum nível de escassez no mercado, porque isso diminui o valor gerado pelas inovações e a velocidade com que obtêm um bom nível de produtividade”, pontua Chase.
A ascensão fica mais óbvia porque não vale mais somente para produtos e serviços digitais ou para negócios que promovam algum tipo de intermediação. Aplica-se a segmentos tradicionais igualmente. Tende a funcionar assim: sempre que fizer sentido econômico para o consumidor, a lógica do compartilhamento pode prevalecer.
Chase exemplifica: “Do ponto de vista da economia do consumidor, faz mais sentido alugar um carro por hora ou minuto do que por dia; a locadora tradicional só aluga por dia porque se estruturou com grandes contratos e muitas etapas de decisão”. É provável que em breve vejamos uma mesma empresa mantendo, em paralelo, linhas de negócios convencionais e compartilhadas.
Há mais um fator que pode contribuir para acelerar a consolidação da nova economia. Chama-se “crise”. Não se trata apenas da crise econômica cíclica, como no Brasil ou na Europa, mas de uma crise mais essencial, do capitalismo.
Mudanças-chave
O que realmente muda no dia a dia dos negócios com a emergência da economia compartilhada? É mais simples do que parece, porque são só três mudanças essenciais.
Em primeiro lugar, muda o que é considerado vantagem competitiva. “O que mais vale hoje, para qualquer empresa, é maximizar a quantidade de conexões, com pessoas, bens e conhecimentos de fora da organização”, explica Chase.
Em segundo, tem de mudar a mentalidade, que, diga-se, é algo particularmente complicado de fazer.
Passo a palavra à empreendedora da ZipCar novamente: “É difícil para empresas com legado fazerem a transição para essa nova lógica, pois elas já têm, obviamente, uma cultura e uma estrutura e estão orientadas para o curto ou médio prazo, muitas vezes sob pressão de seus investidores”. Então, mudar a mentalidade significa mudar estrutura, cultura e orientação estratégica.
Por fim, caem, em geral, as barreiras de entrada, o que significa mudança regulatória. Pergunto a Chase como ela enxerga a revolta de tantos contra o Uber. “Motoristas particulares têm uma profissão registrada, sempre estiveram à disposição para serem contratados”, responde ela de bate-pronto.
Esse argumento de Chase parece acabar com todos os outros. Os reguladores terão de, mais cedo ou mais tarde, aceitá-lo, flexibilizar-se e reconhecer que os motoristas podem continuar a ser contratados por mês, mas também por minuto ou por hora, o tempo de uma corrida.
E no Brasil?
Sei de gente achando que economia compartilhada é coisa de gringo, não de brasileiro. Para esses, respondo com três histórias.
Tripda
Esse aplicativo de caronas intermunicipais já conta com mais de 150 mil usuários em 12 países. Ainda sem fonte de receita, o app sediado em São Paulo tem investimento do grupo alemão Rocket Internet e consolidou o mercado brasileiro ao adquirir outros apps que também atuavam na mesma área (o Unicaronas e o Caronas.co).
“Estimamos que, com o número de caronas realizadas no período, deixamos de emitir uma quantidade de CO2 no meio ambiente equivalente a reflorestar uma área de mais de 6.600 campos de futebol”, afirma Pedro Meduna, cofundador e CEO global da empresa. “É uma alternativa a ônibus, vans e até voos de curta duração. Passageiros e condutores trocam mensagens e estabelecem preferências das viagens”, complementa o presidente de operações no Brasil, Daniel Marcelo Velazo-Bedoya.
O app não envolve dinheiro, mas é praxe os caroneiros ratearem custos.
Fleety
Donos de automóveis podem entrar na plataforma e oferecer seus veículos para pessoas que desejam alugá-los por hora (ou por dia). “Para que todas as partes interessadas tenham ótimas experiências, as corridas têm seguro e fazemos verificações de segurança”, conta André Marim, CEO, que fica na sede, em Curitiba.
A proposta vem agradando: 6 mil pessoas estão cadastradas para locação de 600 automóveis (populares, sedãs e utilitários) oferecidos por pessoas comuns. Curitiba ainda é a região com maior uso, mas o serviço já está à disposição em São Paulo.
A Fleety faz a intermediação das reservas e dos pagamentos, ficando com uma comissão.
Spinlister
O aplicativo permite às pessoas alugar bicicletas especiais e equipamentos para acampar, esquiar e surfar, entre outros, em uma comunidade de relacionamento definida. Já vem sendo utilizado em 30 países e está em fase de instalação em outros 35.
O Spinlister fica sediado na Califórnia, mas foi fundado por um brasileiro, Marcelo Loureiro, que é seu CEO. No Brasil, opera com bikes principalmente, porém a oferta e a demanda por elas ainda são pequenas.
“Atrapalham os problemas estruturais de segurança; uma bicicleta é facilmente roubada e infelizmente não podemos contornar isso com seguros por conta dos altos impostos sobre bikes importadas no Brasil”, diz Loureiro.
Polêmica e potencial
Há uma rejeição à economia compartilhada no Brasil? Quem vê os protestos contra o Uber tende a pensar que sim. Loureiro, do Spinlister, fez-me ver que a polêmica pode fortalecer a economia compartilhada, porque funciona como uma propaganda gratuita. “Essa polêmica só traz mais atenção para a categoria.”
Loureiro também explica que é preciso ter paciência, porque a economia compartilhada é uma maratona, não uma corrida de curta distância. Ele fez um paralelo com seu app Spinlister. “Nosso app ainda consome mais capital do que gera, pois, nesse tipo de marketplace, você precisa de alguns anos de investimento até atingir a massa crítica de usuários que gera o crescimento exponencial.”
Mais ainda, Loureiro diz ver no Brasil “um potencial incrível” para a economia compartilhada: “Esse player mediador do tipo Uber ou Spinlister gera a segurança para que, se as pessoas tiverem um problema com a outra parte, elas tenham a quem recorrer. E os consumidores brasileiros demandam segurança”.
Ele acrescenta que esses players investem também em melhorar a experiência e a comunicação, algo igualmente buscado pelos brasileiros.
Para onde vamos
O modelo econômico que tentamos manter hoje nasceu no setor de transporte: ele é herdeiro das ideias do fabricante de automóveis Henry Ford. Tudo indica que o próximo modelo também sairá do transporte, com o pioneirismo da ZipCar, o alarde do Uber e a disseminação de similares como Lyft, Instacart, Sidecar etc.
Há muitas explicações para esse protagonismo do transporte, mas eu as resumirei poeticamente: se move as pessoas, essa indústria move a economia.
O fato é que o movimento parece tão irreversível quanto foi com Ford. Retomo as palavras da pioneira Robin Chase: “Esse modelo não vai parar nem que a gente tente impedir. É o caminho para evitar crises, pois ele equilibra melhor a oferta com a demanda, gerando maior produtividade”.
As empresas típicas da economia compartilhada estão obtendo, como diz Chase, as duas coisas mais importantes do mundo dos negócios: grandes retornos e elevada percepção de valor pelas pessoas. Acho que o ubercapitalismo não tem volta, não.
Você aplica quando...
... começa a fazer três mudanças: construir uma comunidade (e plataforma digital) de relacionamento, adotar outra mentalidade (transformando cultura, estrutura e orientação estratégica) e aceitar o fim das barreiras de entrada.
... dedica-se a identificar capacidades ociosas em sua empresa que possam ser compartilhadas e cria um modelo de negócio diferente para isso.
A confusão conceitual
Há uma razão simples para tanta confusão em torno do conceito de “economia compartilhada”. Para muitos, algo compartilhado é algo que se toma emprestado e, portanto, é gratuito. Daí o incômodo de vários grupos com o fato de empresas estarem construindo um império de bilhões de dólares apoiadas nessa ideia. Isso é visto como enganação.
Ocorre que “compartilhar” refere-se, sobretudo, a consumir algo conjuntamente com outras pessoas, seja um bem, produto, serviço ou experiência. Trata-se de uso coletivo, não de posse individual, e o uso pode ser remunerado ou não.
Compartilhamos muitas coisas já: o planeta, a eletricidade, a telefonia, a internet, a televisão, as rodovias, o ônibus etc. E pelo jeito compartilharemos cada vez mais.
Alguns preferem adotar “consumo colaborativo” como uma espécie de sinônimo de “economia compartilhada”, porque o verbo “colaborar” enfatiza a ideia de fazer algo juntos.
O “barraco” do Uber
Fabio Sabba, porta-voz da Uber no Brasil (a empresa usa o artigo feminino), conversou com HSM Management sobre como o polêmico negócio está operando no País.
Como a Uber está se instalando no Brasil? Parece diferente dos EUA...
Estamos nos incorporando aos poucos ao ecossistema de transporte das cidades brasileiras e com certeza vamos fortalecê-lo.
Hoje estamos em quatro cidades – Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e São Paulo –, com dois modelos de negócio em operação e o terceiro em implementação, entre os vários de que dispomos.
O UberBlack, que é o modelo tradicional, opera nas quatro cidades. Em São Paulo, já temos o UberX, de custo mais acessível [com carros mais compactos]. E, recentemente, lançamos um beta do UberBike, que são carros com rack para duas bicicletas, como teste em São Paulo e em Brasília.
Nosso crescimento acompanha a realidade de cada local em que estamos.
No mundo, temos muitos produtos diferentes, como o UberRush, que oferece mensageiros de bike, o UberEats, de entrega de comida, e o UberPool, de carona, sem custo.
Quanto vocês têm crescido?
A Uber chegou ao Rio de Janeiro nas vésperas da Copa do Mundo, em maio de 2014, e seu tempo de espera médio por carro é de 5 minutos [para o UberBlack], o que é um bom padrão.
Não avaliamos o crescimento pelo número de motoristas cadastrados, porque estes são parceiros e trabalham quando e quanto querem.
A Uber compartilha?
Nós compartilhamos com o motorista seu carro e seu tempo, e ele compartilha conosco nossa plataforma.
Cada motorista do UberBlack fica com 80% do valor das viagens, enquanto a Uber recebe 20% pelo uso da plataforma. No UberX, o motorista fica com 75%.
O que a Uber oferece ao consumidor? Segurança, experiência e comunicação?
Em termos de segurança, antes de aprovar um motorista que se candidata a ser nosso parceiro, checamos seus antecedentes nas esferas federal e estadual para verificar sua idoneidade. Por meio de uma empresa parceira, checamos, inclusive, se o aplicante tem processos civis e criminais, julgados ou em andamento, em todo o território nacional.
Exigimos que o profissional possua carteira de motorista com licença para exercer atividade remunerada (EAR); não é qualquer um que pode sair dirigindo. Garantimos que o veículo também tenha seguro que proteja o passageiro, o de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP).
E quanto à experiência e à comunicação?
Primeiro, os motoristas são obrigatoriamente avaliados pelos usuários após cada viagem. É necessário manter média de 4,6, em uma escala de 1 a 5, para continuar com a parceria com a Uber.
Antes de eles começarem a atuar, a Uber apresenta a todos como funciona o aplicativo e qual é a filosofia da empresa.
Quem são os motoristas?
Há desde gente que atuava com transporte executivo até mães solteiras e estudantes. Todos se preparam para virar motoristas da Uber e ter, com isso, uma fonte de renda complementar.
Os taxistas acusam a Uber de ilegalidade. Vocês são ilegais?
Não. O motorista da Uber paga IPVA e também o preço cheio do carro, sem o desconto de IPI e ICMS que os taxistas têm. E, como todas as transações são feitas por cartão de crédito, toda a receita é contabilizada e paga imposto de renda.