Em entrevista exclusiva, o CEO do Grupo Abril, Walter Longo, conta como busca reinventar a mídia impressa
Vale a leitura porque...
.. o negócio de revistas foi subvertido pela internet e banners digitais não compensarão isso: só 1% dos 64 trilhões de páginas web tem publicidade, e o anúncio vendido a R$ 20 sai por R$ 1,20 – e sairá por R$ 0,20.
... as soluções inovadoras do Grupo Abril inspiram; afinal, seu negócio pode ser o próximo na lista de rupturas.
Walter Longo, então executivo do Grupo Newcomm e com passagem pela TVA, já havia sido convidado para voltar ao Grupo Abril. Em março de 2016, aceitou. Foi a primeira vez que o convite incluiu todo o grupo, e não apenas a Abril Mídia, possibilitando-lhe o que ele acredita ser fundamental: “uma atuação sinérgica”.
A missão que Longo recebeu do presidente do conselho de administração, Giancarlo Civita, foi clara: que ele ajudasse a empresa a se transformar dentro de um mercado que está mudando de modo acelerado e disruptivo. A seguir, ele conta o que aconteceu em um ano.
Todo dia ficamos sabendo de uma mudança nova no Grupo Abril. Como você fez tanto alvoroço em um ano?
Mudando junto! [risos] Inicialmente achei que eu levaria características mais digitais a uma organização de revistas. Mas descobri uma empresa já bastante imbuída do espírito digital – e, infelizmente, com baixíssima crença no papel, como era a tônica de todo o setor.
No primeiro mês de trabalho, olhamos os dados e falamos com as pessoas para fazer um diagnóstico do problema. Perguntamos quais as cinco coisas feitas no passado que eram maior motivo de orgulho, e todas as iniciativas citadas eram digitais.
Acho que isso é um equívoco conceitual no negócio – não só da Abril, mas da indústria como um todo: aparentemente, as pessoas entenderam que a migração para o mundo digital se daria por um mecanismo de substituição, quando, eu creio, ela se dá por um mecanismo de adição. É preciso trabalhar o digital somado ao impresso.
Em termos de conteúdo, o mundo digital tem responsabilidades distintas das do mundo impresso. Cabe ao digital responder às questões “o quê” e “quando”, enquanto o papel trata das questões “por quê” e “como”. Eles são, e têm de ser, complementares.
O segundo insight da equipe foi o de que precisávamos nos dirigir à curiosidade certa. Aprendemos que há três tipos de curiosidade: diversiva, empática e epistêmica. O curioso diversivo quer saber de tudo um pouco para se sentir seguro e no controle de seu mundo – busca o conteúdo genérico, abundante e superficial que é entregue digitalmente. A curiosidade empática diz respeito a saber tudo sobre pessoas e, de certo modo, também migrou para o mundo digital. O que ficou no âmbito impresso foi a curiosidade epistêmica, que consiste em querer saber por que as coisas acontecem, como acontecem e qual é o resultado delas – é uma análise mais aprofundada das grandes questões. Se um político é preso na quarta-feira de manhã, eu venho para o escritório ouvindo no rádio que ele foi preso, subo no elevador vendo isso, leio na internet e assisto no Jornal Nacional. Minhas curiosidades diversiva e empática estão saciadas. Mas é na mídia impressa que saciarei minha curiosidade epistêmica: “E agora?”.
Acreditamos que revistas sejam os veículos ideais para responder à curiosidade epistêmica e, mundialmente, as que fazem isso, como a The Economist, estão levando vantagem.
Como explicar que, apesar dessa curiosidade, a mídia impressa tenha perdido espaço?
A meu ver, foi um caso de profecia autorrealizável: se eu acredito que a revista vai acabar, começo a diminuir a qualidade do papel e do layout, a “juniorizar” as redações, a não abrir mais as bancas aos domingos, a diminuir tiragem... Tomo iniciativas que farão a profecia se realizar.
Nós fizemos tudo ao contrário. Por exemplo, trouxemos seis revistas que haviam sido vendidas pela Abril de volta para casa, entre as quais a Placar e a Arquitetura e Construção. Aumentamos tiragens. Investimos em melhores layouts.
Agora, isso não seria possível de fazer só na Abril Mídia; o grupo é que dá essa visão.
Por favor, explique.
Um presidente da Abril Mídia analisaria o seguinte: essa revista me dá R$ 9 de faturamento e custa R$ 10, então vou descontinuá-la ou vendê-la para alguém. Já a liderança do grupo todo percebe que não basta dar um resultado melhor para a Abril Mídia. É preciso gerar resultado bom para a gráfica, para a distribuição, para o ecossistema inteiro. O pensamento de grupo, “nexial” como costumo falar, é muito mais eficaz que o de empresas individuais.
Revista é o negócio principal do grupo e a base para outros negócios. Esse é o princípio-chave. Por causa dele, estamos fazendo um grande esforço de valorização da revista.
Foi difícil convencer as pessoas de que mídia impressa tem futuro?
Fizemos um processo de catequese – e procuramos fazê-lo na indústria editorial como um todo. Na verdade, essa crise não é nossa em grande medida; nós a importamos dos Estados Unidos. A assinatura de uma revista lá sempre foi absolutamente subsidiada pela propaganda – uma assinatura anual da Forbes ou da Esquire custa uns US$ 20, o que não paga nem a tinta, nem o papel, nem o correio. Tudo bem ser assim durante um tempo, porque a propaganda pagava tudo, mas, na hora em que a verba de propaganda passou a ser dividida com o mundo digital, a sensação deles foi de fim do mundo.
Já no Brasil, a postura tem sido vender a assinatura por um preço que pague os custos desde os anos 1960. Roberto Civita foi um visionário nesse sentido; ele jamais abriu mão da lógica de que quem tem de pagar pela informação de qualidade é o consumidor daquilo, e não a propaganda.
A confusão é uma pena. Nunca uma indústria falou tanto de seu fim quanto a indústria da mídia impressa.
Os leitores brasileiros também importaram a expectativa da informação gratuita dos norte-americanos, não?
A expectativa dos consumidores é de que a informação diversiva seja gratuita. Mas, pela informação epistêmica, as pessoas estão dispostas a pagar, sim, tanto que nosso volume de assinantes cresceu em 2016, e com um esforço que custou 20% menos do que nos anos anteriores. E isso se verificou em todo tipo de título, tanto no digital como no papel.
Se, em 20 ou 30 anos, tudo migrar para o digital – e digamos que isso possa mesmo acontecer um dia –, nosso modelo de negócio de assinaturas continuará sólido, porque estaremos vendendo o “por quê” e o “como”, pelos quais as pessoas querem pagar.
Seremos percebidos como aquela mídia que separa o relevante do irrelevante, a verdade da mentira. As pessoas desejam pagar por esse serviço de concierge da informação.
Isso significa que acabaram as grandes demissões da mídia impressa atribuídas ao digital?
Deverá significar, sim, à medida que o setor se catequizar. Mas é importante lembrar também que empresas de qualquer setor, daqui para frente, vão ter de atuar de modo efêmero para continuar perenes, o que tem duas consequências no caso de uma empresa de mídia.
A primeira é que sempre estaremos cancelando alguns títulos e lançando outros, o que mexe com os profissionais.
A segunda é que, às vezes, um tema hoje relevante no papel vira digital [o que pode acarretar mudança no perfil do funcionário]. Um exemplo é Capricho, que foi revista impressa e hoje é o maior site teen do mundo, com mais de 500 produtos licenciados. Esse modelo é digital porque é assim que o consumidor teen consome.
No século 21, não somos todos teens? [risos]
Não somos! Justamente! É fundamental entender isso. Por alguma razão que desconheço, acabamos supondo que tudo seria ditado pelos millennials, esquecendo que a adolescência é doença que passa com a idade – a única diferença é que antes passava aos 18 anos, e agora, aos 35. [risos]
O vídeo de três minutos que os millennials adoram ver não é solução para tudo. Não se consegue discutir profundamente um tema em três minutos.
Além do mais, o vídeo não é editável pelo receptor como é o texto; ele é obrigado a vê-lo todo para saber o que lhe interessa, e isso incomoda as pessoas. Vídeo continua a ser mais entretenimento que informação. O setor de marketing precisa entender isso.
“A mídia impressa tem de vender o ‘por quê’ e o ‘como’”
Pensei no mobile view que vocês implantaram: aponto o celular para a página da revista e acesso conteúdos digitais exclusivos. Essa inovação tem a ver com os millennials?
Tem mais a ver com enfatizar o mecanismo de adição “digital + impresso”. Queríamos que as pessoas pudessem vivenciar a adição, desenvolvendo a percepção de que uma revista é uma porta aberta para um mundo de coisas. Implantamos o mobile view na Veja, por um mês, e deu tão certo que o adotamos em todas as revistas da Abril.
Dar certo é observar o rejuvenescimento da imagem da revista e ver os acessos chegarem a 20% dos leitores, além de despertar nas agências a vontade de aproveitar o sistema.
Isso abriu as portas para a GotoShop...
Sim. Já que tínhamos a realidade aumentada, lançamos um e-commerce por meio da revista. Sabe aquele produto que você via na revista, queria comprar e não sabia como? Hoje, em revistas como Casa Claudia e VIP, basta pôr o celular em cima e aparece um carrinho de supermercado no qual você clica e compra.
É um marketplace que montamos em parceria com a Cnova – ela e a Abril dividem os 15% sobre as vendas, a taxa-padrão de marketplaces.
Como surgiu a GoBox, de clubes de assinatura?
A Abril tem expertise em promover, gerenciar vendas recorrentes e entregar produtos; o negócio de vendas por assinatura é um desdobramento natural para nós. Nossas 90 publicações falam com 80 milhões de pessoas mensalmente; sabemos gerenciar assinaturas – temos 3,4 milhões de assinantes e 2 mil operadores de telemarketing, além de seis canais de venda.
E ainda contamos com a Total Express, que faz 770 milhões de entregas por ano.
A GoBox deu os primeiros passos em maio de 2016, quando começamos a construir as relações B2B – anunciamos a oportunidade e 760 empresas, de todos os portes, nos procuraram interessadas na ideia. Em setembro, lançamos cinco clubes, e em dezembro, já tínhamos 20, de vinhos e cervejas a meias, passando por energéticos, fraldas, produtos alimentícios e de fitness.
Devemos fechar 2017 com cerca de 50 mil assinantes em nossos clubes, um negócio ainda pequeno, mas acreditamos que possa ter crescimento exponencial. E no mundo inteiro cresce a taxas de dois dígitos anuais.
O importante é que estamos aprendendo muito. Por exemplo, aprendemos que todo clube de assinatura deve ter três características: ser ou atender a uma conveniência, oferecer curadoria e surpreender. O que chamo de curadoria são as informações que acompanham os produtos – por exemplo, a história das meias irlandesas no clube de meias. E a surpresa se traduz, no clube das fraldas, em receber babadores desenhados por estilistas famosos com sua caixa de fraldas mensal.
Se oferecermos só uma dessas coisas, o clube não se sustenta – para ilustrar, só conveniência faz o assinante começar a considerar preço.
Quais os riscos dessas inovações? A plataforma digital GoRead, em que a pessoa paga R$ 22 ao mês e acessa muitos títulos, não canibalizará as revistas impressas?
Estamos acompanhando esse movimento, mas, por todos os testes até agora, a resposta é “não”. Quem gosta de papel quer papel. A GoRead é mais uma forma de expandir o negócio, trazendo um público que ainda não é nosso e distribuindo mais revistas, de outras empresas.
Como se inova rápido?
Tendo de ser rápido – ou corremos, ou somos ultrapassados. Houve um processo de aceleração na Abril – motivando, cobrando, premiando... Mas o principal é que a empresa tem uma cultura de aceleração natural: com o time de Veja, lançamos um produto novo por semana, enquanto, em agência, do briefing até sair alguma ideia vão-se três meses. Foi um choque – muito positivo.
Um dia se comenta em uma reunião: “Por que não criamos figurinhas de youtubers com mobile view também?”. Em 15 dias, o líder da área aparece com o álbum pronto.
A Abril já tinha uma cultura de aceleração
Qual tem sido o investimento nas mudanças? Vocês adquiriram a empresa de inteligência digital Nerd Monster e parte do Guiato, plataforma de folhetos promocionais com base em localização.
Em 2015, os acionistas injetaram mais de R$ 400 milhões no grupo, mas isso foi consumido pelos juros da dívida e pelos custos de reestruturação. Inovamos quase sem dinheiro, fazendo a maior parte das coisas com parceiros – gigantes ou pequenos. No mobile view, nossa parceira é a Blippar, que trouxe o software de reconhecimento de imagem.
No modo colaborativo, ganhamos menos e a gestão é mais complexa, mas há uma vantagem: você incorpora conhecimento imediato. Por exemplo, em novembro lançamos a Abril Multiassistência, que, por R$ 14 ao mês, oferece guincho, encanador, eletricista, chaveiro à pessoa – na casa ou no carro em que estiver.
A Abril não tem o know-how dessa assistência, mas a Tempo, sim. Ela entrou com sua parte, a Abril divulga, vende e cobra, e as duas dividem o resultado.
Quem está gerenciando as “inovações Go”?
Não trouxe ninguém novo no primeiro ano; queria conhecer os talentos da empresa. Identificamos quem pensava como startup e pusemos essas pessoas no comando das operações novas, com participação no resultado. É a cultura de funcionário virando cultura de intraempreendedor.
Você chamaria a Abril atual de laboratório?
O maior laboratório é o mercado. Quer saber se algo funciona? Lança. E vai arrumando. Hoje a Abril opera em beta.
O clima entre os 5,5 mil funcionários mudou?
Você precisa perguntar para eles. Acho que pelo menos sentem que a Abril tem futuro – e isso melhorou as relações internas, com os bancos e com o mercado publicitário.
A Abril será uma Amazon, com tantas plataformas?
Talvez. De certo modo, a Abril entendeu que a mídia também pode ser uma atividade-meio, onde damos conteúdo às pessoas, geramos atenção e, então, vendemos produtos.
Cartilha de Silvio Santos... A área comercial mudou?
Sim. No esforço para inverter o vetor “eu sou uma solução em busca de um problema”, que sempre dominou a mídia, nossos representantes comerciais agora perguntam aos anunciantes qual é o problema deles. Aí, com a ajuda do nosso big data, criam a solução, que pode incluir branded content em revista, evento etc. Montamos uma enorme área de projetos para isso.
Quais são suas métricas?
No ano mais difícil ano da história, a Abril cresceu em assinaturas e gráfica, mas decresceu cerca de 15% em publicidade. Já este ano, Veja fechou janeiro com 46% a mais de anúncios.
Nós veremos muita novidade ainda?
Verão [risos].
A evangelização setorial
Walter Longo pensa estrategicamente, como prega Michael Porter. Sabe que não basta reinventar a Abril; todo o setor de mídia impressa deve mudar. Assim, tem separado um tempo significativo para a “evangelização” de outras empresas de mídia e de agências de publicidade em sua agenda. Entre seus argumentos, destacam-se estes:
• A leitura em papel é vantajosa. Ele cita uma pesquisa publicada na revista Scientific American para reforçar que a leitura no papel dá seis vezes mais capacidade de apreensão e compreensão do que no meio digital. A razão disso? A leitura é uma dupla decodificação. Você primeiro registra uma imagem no seu olho e então ela vai para o cérebro – onde é transformada em algo abstrato. Isso explica por que lembramos onde estava um conteúdo em uma página – na página da direita, no alto e à esquerda, como este quadro. Essa relação física com o papel nos permite aprender muito mais do que no meio digital, que ainda tem a interrupção constante (por hiperlinks e publicidade) como segunda desvantagem.
• A geração X, do papel, é que consome. A maior parte do consumo de produtos hoje continua cabendo à geração X, conforme uma pesquisa que a Abril encomendou. “É importante entender que as pessoas que estão consumindo têm de 40 a 60 anos e gostam de ler em papel. Além disso, elas vão viver até os 80.” Não faz sentido, portanto, toda a comunicação continuar a se basear na estética, voltada para a geração Y.
Coerência em destaque
O que mais chama a atenção nas iniciativas de Walter Longo como CEO do Grupo Abril é a coerência. Tudo o que ele tem escrito e dito nos últimos anos, ele vem aplicando agora – em pleno “tesarac”, como trata “o momento em que as regras antigas já não valem mais e as novas ainda não foram estabelecidas”.
Por exemplo, a sinergia e a visão holística que busca implementar em sua organização encontra eco no livro Nexialismo, do qual é coautor. As plataformas Go que vem lançando correspondem, de várias maneiras, às seis tendências que identificou no livro O Marketing na Era Pós-Digital: efemeridade, mutualidade, multiplicidade, sincronicidade, complexidade e tensionalidade.
Até o fato de ele compor sua equipe de alta gestão prioritariamente de mulheres remete a um livro seu – Homens São Analógicos, Mulheres São Digitais. Baseando-se em estudos de biologia evolutiva, o texto identifica as mulheres como naturalmente mais bem equipadas para lidar com os desafios de uma era de abundância, graças, entre outras coisas, a suas capacidades de socialização e multitarefas.
A crença no (intra)empreendedorismo também se espelha no comportamento pessoal de Longo – em toda a sua carreira, nunca deixou de empreender. O CEO do Grupo Abril será palestrante no HSM Summit –Leadership & Innovation, em maio.