Um novo grupo de executivos que vem sendo conhecido como “geração flux” começa a assumir o comando de algumas empresas, mudando as regras do jogo; segundo reportagem, eles não temem a instabilidade e buscam significado social mais amplo
O ator e músico Jared Leto coleciona prêmios –desde um Oscar de melhor ator coadjuvante por sua atuação no filme Clube de Compras de Dallas até uma menção no livro Guinness dos recordes pela maratona de 309 shows realizada em dois anos com sua banda 30 Seconds to Mars.
Mas a maior revolução do artista talvez tenha acontecido no mundo dos empreendimentos, uma vez que Leto é um ativo investidor em startups, entre elas a Nest, a Airbnb e a Spotify. “Sou um criador. Faço e compartilho coisas com o mundo com o intuito de contribuir para a qualidade de vida das pessoas, até por meio de empresas”, conta.
A atitude de Leto transfere para qualquer de seus trabalhos a paixão por contribuir, e ele não está sozinho. Steve Ells, CEO da rede de restaurantes norte-americana Chipotle Mexican Grill, reza na mesma cartilha. O slogan de seu negócio, “Comida com integridade”, está presente em todas as decisões tomadas na empresa, da escolha dos fornecedores de carne ao planejamento estratégico elaborado na sede da organização, em Denver, Colorado, EUA.
A marca se diferenciou de concorrentes como Burger King e McDonald’s ao apostar no uso das carnes produzidas sem hormônios ou antibióticos, eliminar o uso de gorduras trans antes de isso entrar na moda e trabalhar apenas com feijões e abacates orgânicos [ingredientes muito presentes em seu cardápio].
Nas estratégias de vendas e de marketing da Chipotle, isso se traduz em um cardápio reduzido e preços relativamente altos. Essa abordagem nutriu a rede, que hoje conta com cerca de 1,7 mil lojas, receita de US$ 3,6 bilhões e valor de mercado de US$ 21 bilhões.
Não são apenas empresas pequenas e médias [para padrões globais] como as de Jared Leto e Steve Ells que adotam essa visão nobre. “Se vocês querem que eu tome decisões com claro retorno sobre o investimento, então é melhor venderem suas ações”, avisou outro CEO que atua na “contramão” do mercado.
A ênfase no aspecto social acima dos resultados financeiros poderia parecer algo hippie, não viesse de Tim Cook, presidente da companhia mais valiosa do mundo, a Apple, que, alguns meses antes do recado aos acionistas, anunciou que sua empresa tinha um compromisso com “o avanço da humanidade”.
Leto, Ells e Cook representam um crescente grupo de líderes que não se movem apenas por dinheiro, mas pela busca de significado social mais amplo.
A motivação pode ser pessoal, emocional e até moral, mas parece estar sendo cada vez mais recompensada pelo mercado. Para muitos, pessoas assim são as que estão em melhores condições de prosperar nesta era de mudanças em alta velocidade. O fato é que elas até já ganharam um nome: “geração flux”.
Eles deixam fluir
A palavra “flux” vem de “fluir”, e os gestores desse tipo não são definidos pela idade, como nas gerações X, Y ou baby-boom. Caracterizam-se, isso sim, pela disposição e pela capacidade de se adaptar. Dizem para onde caminham suas empresas, sempre com um senso de propósito social no que fazem –e que não pode ser confundido com serviço social.
Para eles, uma missão representa uma ferramenta estratégica essencial, que permite filtrar a enxurrada de estímulos hoje existente, evitando distrações que reduzam a criação de valor. Assim, a missão permite motivar e engajar as pessoas para encontrar modos inovadores de solucionar problemas.
Mais do que isso, eles vivem de acordo com sua missão e muitas vezes descobrem que ela é a maior vantagem competitiva de seus negócios, ao viabilizar a diferenciação dos produtos, a atração e retenção de talentos e até a fidelização dos investidores.
Enquanto boa parte dos executivos e acionistas continua obcecada pelos resultados trimestrais, os líderes flux acreditam que as métricas imediatas às vezes afastam a empresa do impacto em longo prazo, o que pode ser a parte mais frágil do sistema econômico atual. Entre as empresas com líderes flux estão, além de Apple e Chipotle, Google e PepsiCo.
Já há quem acredite que significado é mais importante que felicidade. Jennifer Aaker, especialista em gestão da Stanford University, é uma das que desafiam a noção de que a busca da felicidade é nossa maior motivação. O trabalho da estudiosa sugere que a satisfação com a vida é mais alta e duradoura quando o significado assume o posto de principal motivação.
A escolha de uma carreira pautada pelo significado não é uma opção para todos. Serve especificamente àqueles que buscam algo além da satisfação das necessidades básicas em sua vida, àqueles que querem fazer, criar ou oferecer mais ao mundo porque isso justifica sua existência.
Um novo modelo de empresa
“O propósito é a essência que justifica a existência de uma empresa”, conta Hirotaka Takeuchi, professor de administração da Harvard Business School e autor de uma pesquisa que oferece um modelo para a construção de uma empresa baseada na missão.
No modelo de Takeuchi, o diferencial é a abordagem “de dentro para fora”, que é oposta à atual tendência de avaliar primeiro o ambiente externo e as condições do setor para em seguida posicionar a empresa. “As crenças e ideias da gestão se transformam no núcleo”, explica o especialista.
Essa teoria pode soar “sentimentaloide” aos ouvidos dos líderes treinados para preferir métricas quantificáveis, como crescimento das vendas ou margem da operação, mas Takeuchi não se importa com isso.
“Os consultores afirmam que a estratégia deriva do big data, mas, na verdade, ela vem do coração”, insiste o professor de Harvard, em um tom polêmico. Os céticos e cínicos duvidam dele, naturalmente, mas e se Takeuchi estiver certo?
Como gerenciar
Depois de conversar com dezenas de líderes da geração flux nos últimos meses, a reportagem teve clareza de que não existe uma fórmula definitiva para gerenciar uma empresa “de dentro para fora”. Na verdade, faz pouco sentido tentar prescrever algo, considerando a gama de paixões que movem as empresas e a variedade de stakeholders envolvidos.
No entanto, os melhores líderes dessas instituições mostram ter algo em comum: eles pensam com muito cuidado em como criar um ambiente corporativo capaz de ajudá-los a perseguir a missão da empresa.
O diretor de criação do Google Creative Lab, Robert Wong, por exemplo, criou esse ambiente orientado por seus quatro Ps particulares: propósito, pessoas, produtos e processos.
Nessa fórmula, a ordem dos fatores tem de ser respeitada. “Se você escolhe o propósito certo, atrairá as pessoas certas”, diz Wong. “A era gerencial acabou e sua equipe pode ir embora quando quiser. O propósito é importante, porque permite reter os talentos.”
Para a estilista e ícone da moda norte-americana Eileen Fisher, que há tempos aborda as “empresas como um movimento”, a adaptabilidade também é para criar esse ambiente baseado na missão. Fisher decidiu, alguns anos atrás, dedicar mais tempo a sua fundação, distanciou-se dos negócios e depois voltou atrás, achando que poderia exercer maior impacto sobre o mundo comandando a empresa.
E, mesmo com sua empresa apresentando números favoráveis nos últimos dois anos, ela continua a se perguntar: “Qual o sentido de vendas e lucros maiores se isso significar criar mais estresse para nós?”.
Não aos investidores
A existência de uma missão exige que se façam trade-offs difíceis, como o de Naithan Jones, CEO da AgLocal. Com raízes rurais, o empreendedor nascido na Inglaterra trocou a vida de produtor por um emprego na Kaufmann Foundation e depois se mudou para San Francisco, nos EUA, onde desenvolveu uma plataforma para ajudar os produtores rurais a vender diretamente para restaurantes e atacadistas.
Mas, assim que sua empresa apareceu na lista das mais inovadoras da Fast Company, foi preciso tomar uma decisão dura: a AgLocal não tinha o número de usuários imaginado.
Diante das opções de produzir um sistema mais adequado para os agricultores ou de transformar a empresa em uma criadora de softwares voltados para os restaurantes ou atacadistas, opção defendida por alguns investidores e funcionários, Jones declarou: “Não foi para fazer software que abrimos a empresa”.
A determinação de Jones revelou-se acertada em meados de 2014, quando a AgLocal conseguiu um contrato para fornecer carne para a Amazon Fresh, uma gigante do setor atacadista de Seattle.
Esse tipo de decisão ilustra o que Jared Leto chama de “poder do não”. “Todos nós queremos dizer sim, porque com a aceitação vêm as oportunidades. Mas o poder do não também tem vantagens: traz foco e envolvimento. Acho que devemos fazer só o que nos apaixona –e dizer ‘não’ ao resto.”
Ter essa postura uma vez ou outra é uma coisa, porém manter-se fiel a ela pode ser complexo, como ensina o caso de Indra Nooyi, CEO da PepsiCo. A executiva sofre pressão para “fazer dinheiro a qualquer custo” e tem dificuldade para equilibrar as necessidades de longo prazo da empresa com as demandas de curto prazo dos acionistas, mas mantém a missão “performance com propósito”.
Em uma época em que cresce a preocupação com a saúde, a estratégia da PepsiCo orientada para a missão visa:
- Acrescentar itens mais saudáveis às linhas de produtos.
- Reduzir o uso de plásticos, de combustível e de água.
- Criar um ambiente de trabalho em que as pessoas possam ser elas mesmas.
Cálculo frio
Essas políticas surgem do coração mesmo, como diz Takeuchi, ou são friamente calculadas? As duas coisas.
Muitas pessoas questionam a autenticidade da missão de Nooyi: será que uma empresa com agenda social realmente séria lançaria a linha de sucos de frutas Mountain Dew como item de café da manhã, como fez a PepsiCo?
Em uma prova de como a performance está presente no propósito nesse caso, após anos atrás da concorrente Coca-Cola as ações da PepsiCo atingiram quase o dobro do retorno em relação aos últimos dois anos.
Também o ideal “Comida com integridade” da Chipotle enfrenta conflitos no dia a dia, resolvidos racional e friamente, mas com transparência.
Quando não consegue a quantidade de carne orgânica necessária para rechear todos os burritos que vende, Ells orienta suas lojas a afixar avisos da troca de matéria-prima –e não perde clientes.
Na internet, é possível assistir ao discurso feito por Casey Gerald, CEO da MBAs Across America, na Harvard Business School, em que ele fala sobre o poder de transformação da nova geração. Parece que algo está mudando.
O fluxo e as causas
Neste momento em que as coisas fluem à vontade, a conexão que as pessoas sentem com seu local de trabalho vem caindo. Em 2013, o Instituto Gallup realizou um estudo com profissionais norte-americanos e, em todos os setores e faixas etárias, o envolvimento era minúsculo. Porém, nos redutos em que a paixão pelo trabalho tinha espaço, a produtividade, os níveis de satisfação dos clientes e a lucratividade superavam a média. A pesquisa concluiu: “O envolvimento exerce maior impacto sobre o desempenho do que as políticas corporativas”.
“Sempre existiu um acordo psicológico entre os profissionais e as empresas, ainda que inconsciente”, revela o brasileiro Marcelo Cardoso, especialista em motivação do Grupo Fleury, ex-Natura, cujos workshops têm feito sucesso com líderes da geração flux, como a estilista Eileen Fisher. Antes imperavam os contratos baseados na fidelidade (segurança de emprego em troca de compromisso com o trabalho), com uma relação mais transacional entre as partes –bônus, ofertas de ações e outras premiações. “Mas, conforme a complexidade aumenta, esse tipo de acordo não é mais satisfatório”, explica Cardoso.
Para o estudioso, um contrato mais eficiente é o que mistura um sentido de objetivo individual com os anseios da empresa, desbloqueando a necessária “energia psíquica” das pessoas. O relatório do Gallup confirma que “missão e objetivo” são considerados um motivador valioso.