Ciência sem consciência não passa de ruína da alma.” Atribuída a François Rabelais, importante escritor e médico francês do Renascentismo, a frase, quando foi proferida, ainda não tinha confrontado seu pior exemplo na história: o nazismo. Calcado na ideia da supremacia racial ariana, o movimento partiu de um princípio pseudocientífico para executar seu plano macabro, exterminando aqueles classificados como inferiores. Além do extermínio em massa dos judeus, foi nesse período que médicos nazistas lideraram dezenas de experimentos cruéis, expondo suas vítimas a condições extremas apenas para observar como seus corpos reagiam.

Dentre esses médicos estava Julius Hallervorden, especialista em neuropatologia, que dedicou sua carreira a compreender as causas das desordens mentais. Sua coleção de cérebros humanos chegava a quase 700 órgãos, que ele encomendava diretamente dos campos de concentração. Sem contar os experimentos com prisioneiros vivos que, de tão absurdos, nem vale a pena relatar aqui. O fato é que, em nome da ciência, atrocidades foram cometidas ao longo da história e até hoje cientistas sérios e éticos ainda sentem os reflexos dessa imagem de médicos-monstros elevada pelo nazismo.

“Como vou estudar o cérebro humano em desenvolvimento se ele está dentro de um útero materno? É por isso que a maior parte da neurociência é uma área indireta – ou seja, usamos métodos experimentais indiretos, como ultrassom, porque você não quer ser invasivo, abrir a barriga da mulher para examinar o cérebro do feto e estudar o que acontece lá”, explica Alysson Muotri, PhD em genética pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na escola de medicina da University of California em San Diego.

Muotri é provavelmente um dos cientistas brasileiros com uma das carreiras internacionais mais notórias da atualidade. Recentemente, seus minicérebros, estruturas tridimensionais desenvolvidas a partir de células-tronco, foram parar no espaço. Em uma parceria com a NASA, esses organoides, que simulam um estágio primário de desenvolvimento do cérebro humano, foram enviados para uma missão espacial para que se possa entender os efeitos da microgravidade em nosso cérebro.

Diferentemente do que acontecia com os médicos nazistas, a tecnologia desenvolvida no laboratório de Muotri mostra que, com os avanços tecnológicos, já é possível estudar o cérebro humano sem procedimentos invasivos, ainda que tudo isso seja muito novo.

O homem que não tinha memória

Toda vez que interagia com Henry Molaison, Brenda Milner precisava se apresentar. Ela já o acompanhava havia anos, mas o ritual era imprescindível, pois o paciente não conseguia se lembrar da médica. Dela e de mais nada e ninguém que ele conhecera após uma cirurgia feita quando HM, como ficou conhecido na comunidade científica, tinha apenas 27 anos. Na tentativa de curar suas crises epiléticas, que começaram após um traumatismo craniano que ele sofreu aos 9 anos, os médicos realizaram uma cirurgia experimental no cérebro, que resultou na retirada bilateral de seu hipocampo.

Avanços tecnológicos possibilitaram a evolução da neurociência, que sempre dependeu de estudos indiretos para compreender o cérebro humano

As crises epiléticas de HM diminuíram, mas a cirurgia lhe deixou um efeito colateral irreversível: a incapacidade de formar novas memórias. HM morreu em dezembro de 2008, aos 82 anos, lembrando-se perfeitamente dos acontecimentos de sua adolescência, mas espantando-se todos os dias ao enxergar no espelho a imagem de um idoso que ele não reconhecia. Para Milner, professora do departamento de neurologia e neurocirurgia na McGill University e professora de psicologia no Montreal Neurological Institute, e para uma centena de cientistas que estudaram o caso, HM deixou um importante legado de diferentes estudos sobre aprendizagem, memória e esquecimento.

Da década de 1950, período em que HM começou a ser estudado, até os anos 1990, a neurociência caminhou a passos mais lentos. A observação e os testes, como os de memória que Milner aplicava em seu paciente, eram técnicas empíricas disponíveis na época e boa parte dos estudos ainda tinha como finalidade descobrir novas drogas para tratar doenças mentais. Compreender o comportamento humano a partir do funcionamento do cérebro ainda dependia de avanços tecnológicos, que permitiriam unir comportamento, estrutura e função.

A década do cérebro

Em uma pequena cidade chamada Anaheim, na Califórnia, especialistas do mundo inteiro aguardavam ansiosos o início do evento. O ano era 1992, início daquela que ficou conhecida como “a década do cérebro”. Na ocasião, mais de 4 mil trabalhos sobre as neurociências foram apresentados, revelando descobertas que, em certa medida, só foram possíveis com o avanço da tecnologia de ressonância magnética (RM).

Criada na década de 1950, a RM percorreu uma longa trajetória de evolução tecnológica até que, na década de 1990, ela pudesse mapear várias regiões do cérebro humano. Foi nessa época que ratinhos de laboratório começaram a ser substituídos pela tecnologia, quando o interesse era compreender, por exemplo, as áreas do cérebro ligadas à memória e ao nosso sistema motor.

A neurociência caminhou a passos mais lentos até os anos 1990. Mas, na década do cérebro, tudo mudou

“Os Estados Unidos pegaram todo o dinheiro que gastavam na Guerra Fria e resolveram investir em pesquisas sobre o cérebro, justamente para melhorar o preparo da formação do exército norte-americano. Eles entendiam que isso poderia trazer um grande subsídio para transformar soldados em supersoldados. Então, a ascensão da neurociência se dá com esse investimento maciço americano na década de 1990, revolucionando toda a produção de conhecimento que existia até ali”, comenta Carla Tieppo, neurocientista e consultora organizacional.

Dos laboratórios para as empresas

Para as neurociências, a virada do século foi um importante marco. O incremento do conhecimento sobre o funcionamento cerebral ocorrido na década de 1990 permitiu que os estudos extrapolassem as barreiras dos laboratórios e chegassem a outras áreas.

“Todo mundo que precisava entender o ser humano e que antes só contava com a psicologia como base estrutural passou a enxergar nas neurociências um campo novo de captação de insights. Foi assim que marketing, economia, educação, arquitetura, recursos humanos e a própria psicologia passaram a se valer dos conhecimentos neurocientíficos”, explica Tieppo. “E isso mudou toda a abordagem. Já não estudávamos mais o cérebro somente para entender a doença ou para propor tratamentos. Começamos a olhar para o cérebro como o órgão responsável pelo processamento das informações que produzem o comportamento humano”, complementa a especialista.

A economia clássica, por exemplo, que hipervalorizava a racionalidade para explicar nosso processo de tomada de decisão, viu sua estrutura ser abalada quando uma nova corrente de pensamento, chamada economia comportamental, começou a surgir. Mas foi em 2002, quando um psicólogo levou para casa o Nobel de Economia, que o conteúdo rompeu o rótulo de “corrente alternativa” para ganhar a atenção do mundo. O ganhador, Daniel Kahneman, além de ser considerado o pai da economia comportamental, também ficou conhecido por Rápido e devagar, livro lançado em 2011 e que foi amplamente discutido (e consumido) no mundo corporativo.

E se vivemos na era em que o cérebro é estudado para entender como ele processa informações que resultam em comportamentos, é na intersecção entre comportamento observável e neurociências que surge a neuroeconomia: área que estuda o funcionamento cerebral enquanto o indivíduo está tomando decisões financeiras econômicas, na tentativa de compreender “a lógica” por trás dessas decisões.

Considerado o “pai da neuroeconomia”, Paul Zak estudou a relação entre confiança, moralidade e ocitocina, hormônio que, entre outras funções, é responsável por parte do prazer do orgasmo de homens e mulheres.

A ideia de correlacionar esses três elementos veio após um estudo do início dos anos 2000 em que Zak mostrou que países com altas proporções de pessoas confiáveis são mais prósperos. Isso porque, nessas nações, mais transações econômicas ocorrem e mais riqueza é criada, diminuindo a pobreza. “Assim, países pobres são, em geral, países de baixa confiança. Então, se eu entendesse a química da confiabilidade, talvez pudesse ajudar a diminuir a pobreza”, conta o neuroeconomista que, em novembro, esteve no palco principal da HSM Expo 2019.

Para investigar sua tese, Zak recrutou voluntários, que ganhavam US$ 10 caso concordassem em participar do experimento. Após algumas instruções, esses voluntários eram colocados em frente a um computador e, em determinado momento, recebiam a seguinte mensagem: “Você quer desistir de parte dos dólares que ganhou por estar aqui e enviá-los para outro voluntário no laboratório?”. Sem ver ou ter contato com essa outra pessoa, o voluntário ainda recebia uma segunda informação: “A quantia da qual você desistir triplica na conta da outra pessoa”. Do outro lado, a segunda pessoa também recebia uma mensagem, que dizia: “O voluntário 1 enviou para você esta quantia de dinheiro. Você quer ficar com tudo, ou quer devolver alguma quantia?”.

Se todas as decisões fossem tomadas de maneira racional como imaginava a economia clássica, o voluntário 1 não cederia seu dinheiro e, se cedesse, o voluntário 2 não o devolveria. Pois bem. O que Paul Zak e outros cientistas que replicaram esse estudo ao redor do mundo descobriram foi surpreendente: 90% dos primeiros tomadores de decisão enviaram dinheiro e, dentre aqueles que receberam dinheiro, 95% devolveram alguma quantia. Mas por quê? Pelas amostras de sangue coletadas dos voluntários, notou-se que, quanto mais dinheiro a segunda pessoa recebia, mais seu cérebro produzia ocitocina, e quanto mais ocitocina presente, mais dinheiro era devolvido. Assim, o neuroeconomista encontrou o que ele chama de “biologia da confiabilidade”.

Para aferir suas conclusões, Zak não se limitou aos experimentos laboratoriais e foi para o mundo real testar os níveis de ocitocina das pessoas antes e depois de acontecimentos relevantes. Assim o fez em um casamento, em um salto de paraquedas, em usuários de redes sociais e, a cada experimento, a relação entre ocitocina e confiabilidade foi se confirmando.

Pesquisas como as de Zak contribuem de maneira significativa para o avanço da neuroeconomia no mundo e servem de base para que se compreenda como os conhecimentos neurocientíficos podem ser aplicados no ambiente organizacional. Nas páginas seguintes, HSM Management apresenta cases de empresas em diferentes áreas, não sem antes destacar que, apesar de nomes específicos como neuromarketing e neuroeducação, essas divisões são gentilezas didáticas. A interdisciplinaridade está diretamente ligada às neurociências e isolar suas partes pode causar uma interpretação errada de sua abrangência.

Convido você a conhecer esse mundo novo que, se até agora lhe pareceu simples, talvez se deva a meu excesso de didatismo. Esse é o alerta de dez entre dez especialistas com quem conversei: tentar transformar a neurociência aplicada em uma “ferramenta de gestão” não só distorce seu propósito como contribui para a banalização de seus conceitos. Alerta feito, contexto exposto, agora é só mergulhar nas diferentes aplicações da neurociência aos negócios que preparamos para você.