No início dos anos 1990, a mídia era centralizada, controlada por forças poderosas e com receptores passivos. A nova mídia, a web, é, ao contrário, altamente distribuída; todo mundo é participante, não receptor inerte. Essa incrível neutralidade tem o potencial de criar uma sociedade muito mais igualitária e próspera, onde todos possam compartilhar a riqueza que produzem. Muitas coisas boas vêm acontecendo de fato, mas, em geral, os benefícios da era digital são assimétricos, pertencem a uma pequena porção de empresas que transformam os dados em lucros ou a governos poderosos que utilizam esses dados para nos espionar.

E se houvesse uma internet de segunda geração que permitisse a troca de valor verdadeira, peer-to-peer? Don Tapscott, que há 35 anos estuda a era digital, acaba de lançar com seu filho, Alex, o livro Blockchain Revolution: How the Technology Behind Bitcoin Is Changing Money, Business, and the World, que trata da tecnologia que, acredita ele, viabilizará esse compartilhamento de valor entre todos. Segundo Tapscott, o blockchain poderá facilitar a colaboração e o rastreamento de todos os tipos de transações e interações, oferecendo uma privacidade genuína e tornando-se “uma plataforma para a verdade e a confiança.

O blockchain é um banco de dados de distribuição livre que usa criptografia de última geração. Ele pode mudar tudo o que fazemos, porque não precisaremos mais de fiadores. Se hoje, quando vamos enviar dinheiro a alguém, temos de passar por um banco, uma operadora de cartão ou um órgão governamental que autentique quem somos e quem é nosso receptor, poderemos fazer operações diretamente com base em um protocolo de confiança provido pelo blockchain.

Quando Satoshi Nakamoto criou o protocolo bitcoin [leia reportagem a respeito na HSM Management nº 116], o gênio da tecnologia mais uma vez saiu de sua lâmpada. A internet pode estar nascendo de novo, como mostram os principais trechos desta entrevista de Tapscott, editada em tópicos.

No blockchain, constrói-se confiança com a colaboração em massa e com códigos inteligentes

Como funciona

“O blockchain é basicamente um banco de dados distribuído por milhões de computadores que utiliza criptografia de ultima geração. É livre, o que significa que qualquer um pode mudar o código subjacente e ver o que está acontecendo ali, e realmente direto, pois não exige intermediários poderosos nas transações.

Esse banco de dados pode registrar qualquer tipo de informação estruturada, não apenas quem pagou a quem, mas também quem se casou com quem, quem possui qual terra ou que lâmpada usou energia de qual fonte. Isso faz com que seja adequado à internet das coisas, porque será preciso estabelecer trilhões de transações em tempo real entre objetos, algo que as instituições financeiras, por exemplo, não conseguirão fazer.

O blockchain é algo impossível de hackear e, por isso, tem sido considerado uma plataforma para a verdade e para a confiança. Suas implicações são surpreendentes, não só para a indústria de serviços financeiros, como para quase todos os aspectos da sociedade.

Para mim, o blockchain é a maior inovação da história da ciência da computação. Refiro-me à ideia de uma base de dados distribuída, na qual a confiança é estabelecida por meio da colaboração em massa e por códigos inteligentes, em vez de precisar de uma instituição poderosa que faça a autenticação e o acordo.

Se eu lhe devo US$ 20 e fazemos a transação para que eu lhe pague, isso será autenticado por uma grande comunidade de ‘mineradores’, pessoas que têm um poderoso recurso de computação. Só para falar do bitcoin, que é o maior dos blockchains hoje, alguns estimam que toda a capacidade de processamento do Google equivaleria a 5% do poder da capacidade de processamento do bitcoin.

Como os mineradores conseguem autenticar a transação? Cada um deles é incentivado a se tornar o primeiro a descobrir a verdade, e esta, uma vez descoberta, se torna evidência para todo mundo. Quando o minerador descobre a verdade, ele recebe dinheiro em bitcoins.

Essa plataforma resolve o enorme ‘problema de cobrança dupla’. Sabe como? Para eu conseguir enviar os mesmos US$ 20 para outra pessoa (ou pegar o dinheiro de volta), teria de tentar hackear o que o minerador recebeu, e isso não é possível, porque há um bloqueio de 10 minutos. Também há um bloqueio de 10 minutos no minerador antes dele, no outro, no outro, e assim por diante. Há bloqueios em cadeia. Como o blockchain envolve um sem-número de computadores de mineradores, cometer fraude fica praticamente inviável.

Esse banco de dados distribuído nos permite ter um registro fiel e imutável de tudo e não depende de um país porque está espalhado pelo mundo inteiro."

Mudanças 

A indústria de serviços financeiros pode viver grandes transformações. Na pesquisa para o Blockchain Revolution, identificamos oito coisas que essa indústria faz: movimenta dinheiro, armazena dinheiro, empresta dinheiro, troca dinheiro, atesta dinheiro, e assim por diante. E tudo isso pode ser modificado com o blockchain.

O mesmo vale para qualquer indústria. Um exemplo é a música. É um desastre, pelo menos do ponto de vista dos artistas. Eles costumavam ter a maior parte de seu valor tomado por grandes selos e, hoje, as empresas de tecnologia ficam com a parte do leão.

Agora, imagine se a nova indústria da música fosse um aplicativo distribuído no blockchain em que eu, como compositor, pudesse postar minhas músicas com um contrato inteligente especificando a forma de uso. Eu diria: " Essa música é grátis para você ouvir agora, mas, se quiser usá-la em seu filme ou como toque de seu celular, tem de me pagar x, e um contrato inteligente me garantirá o pagamento.

Não é ficção. Imogem Heap, cantora e compositora brilhante do Reino Unido com recorde de vendas, está participando da criação da Mycelia e trabalha com uma empresa incrível chamada Consensus Systems, que atua no mundo todo, de desenvolvedores de blockchain que usam a plataforma Ethereum; Ethereum é um blockchain. Ela já postou sua primeira música na internet e espero que muitos grandes artistas venham a fazer isso."

O que pode sair errado

“Não sou futurista. Acredito que o futuro não deve ser previsto – é algo a ser alcançado.

No entanto, identificamos dez obstáculos e os analisamos detalhadamente em nossa pesquisa. Um deles é a energia consumida para o blockchain funcionar, que é gigantesca; outro, a possibilidade de essa tecnologia ser o novo exterminador de empregos.

Os maiores problemas talvez tenham a ver com governança. Diferentemente da internet, que é um ecossistema de governança sofisticado, o universo de blockchain e moedas digitais é selvagem como o Velho Oeste norte-americano, um lugar de imprudência, caos e calamidade, ou seja, pode matar se não encontrarmos uma liderança que una e crie organizações equivalentes às que temos para a governança da internet.

Para esta, temos a Internet Engineering Task Force e o W3C Consortium, que desenvolvem padrões para a rede. Contamos também com o Internet Governance Forum, que cria políticas para governos. E há a Internet Society, que é um grupo de apoio. Temos a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), rede operacional que apenas entrega os nomes de domínio. Há uma estrutura e um processo para descobrir as coisas.

Agora, precisamos disso para o blockchain. Eu tenho esperanças de que isso aconteça."

2 bilhões de pessoas vão entrar no sistema financeiro global

O que está em curso e o que falta acontecer

“Para mim, é como se estivéssemos novamente nos anos 1990 [quando a internet começou a se popularizar]. Temos os investidores mais inteligentes, os programadores mais inteligentes, os executivos mais inteligentes, as pessoas em bancos mais inteligentes, o governo mais inteligente e os empresários mais inteligentes trabalhando nisso. Isso sempre é sinal de que algo grande está acontecendo. Em 2015, US$ 1 bilhão foi gasto em investimentos na área e consigo ver o poder das aplicações baseadas em blockchain: vão intervir positivamente em muita coisa.

Tenho muita esperança. Em vez de simplesmente redistribuir a riqueza, talvez possamos mudar o modo como é distribuída. Imagine todas essas pessoas que carregam um supercomputador no bolso [o smartphone] e estão conectadas a uma rede, mas não têm uma conta no banco porque possuem apenas alguns porcos e galinhas. Essa é a conta bancária delas. Haveria 2 bilhões de pessoas entrando no sistema financeiro global.

Calcula-se que 70% de todos os donos de terras não têm um título registrado que comprove a propriedade e podem perdê-las a qualquer momento. Imagine poder mudar isso.

Imagine um mundo em que a ajuda filantrópica não fosse consumida pela burocracia, mas chegasse diretamente ao beneficiário sob um contrato inteligente. Ou então um blockchain de Airbnb, que faria cada proprietário de imóvel ficar com o lucro, em vez do dono do aplicativo. Isso tudo tem a ver com o valor que vai para os criadores de valor e não para forças poderosas que hoje capturam.

Imagine usar a internet e poder proteger a privacidade, um direito humano fundamental e a base de uma sociedade livre. Está tremendamente mal informado quem diz que a privacidade morreu. Basta que cada um de nós tenha a própria identidade em uma caixa-preta no blockchain. Quando fizermos uma transação, será a caixa-preta que proverá as informações necessárias para concretizá-la e que coletará dados, e ninguém terá acesso a ela. Manteremos nossos dados e apenas se quisermos os venderemos para lucrar com isso.

Sei que ainda não conseguimos fazer essas coisas, mas estou convencido de que, com o blockchain, poderemos fazê-las. Sinceramente, nunca vi uma tecnologia com tanto potencial para a humanidade.

Saiba mais sobre Don Tapscott

Quem é: Consultor canadense especializado em estratégia corporativa, transformação organizacional e o papel da tecnologia nos negócios e na sociedade e professor da Rotman School of Management, da University of Toronto.

Seus livros: É autor de 15 livros sobre tecnologia e negócios, entre eles o best-seller mundial Wikinomics: Como a Colaboração em Massa Pode Mudar o Seu Negócio.