As organizações familiares do Brasil são muito avançadas em gestão. Essa é a primeira boa notícia que o experiente John Ward, professor da Kellogg School, consultor e tido como uma das mais renomadas autoridades mundiais no assunto, dá à HSM Management em solo brasileiro. Sim, muitas empresas familiares brasileiras já se encontram na terceira ou quarta geração e, por sua influência europeia, bem diferente da norte-americana, vêm aproveitando uma vasta tradição nessa área, confirmada na pesquisa informal realizada pelos especialistas com gestores brasileiros.

Em entrevista exclusiva à editora-executiva Adriana Salles Gomes, Ward e sua sócia Stephanie Brun de Pontet falaram principalmente sobre suas propostas diferenciadas nessa área: a importância da atuação de diretores independentes no conselho de administração, o feedback específico para parentes e a necessidade de “estruturar” a empatia no âmbito familiar. Os especialistas, que participaram, em maio último, do Special Management Program HSM, destacam, entre outras coisas, que conselheiros independentes devem ser especialmente bem-vindos não apenas para arejar a visão dos negócios, como também para ajudar a própria família a se entender.

Ouvi certa vez de uma CEO brasileira, falando sobre as diferenças entre a “corporation” e a empresa familiar, que esta tem grande vantagem no século 21 por causa dos desafios de sustentabilidade –ela teria mais visão de longo prazo. Vocês concordam?

John Ward: É uma pergunta fascinante. Em muitas economias emergentes do mundo, parece que se pensa o contrário: mais e mais empresas familiares estão abrindo seu capital. Mas, muitas vezes, pelos motivos errados. Julgam que, se não o fizerem, não terão a mesma disciplina e que estar “no mercado” as torna mais profissionais. Ou seja, está implícito que uma empresa familiar não consegue ser profissional, sofisticada, transparente. Isso, porém, não é verdade. Negócios familiares podem ser tão disciplinados, profissionais, transparentes e sofisticados quanto qualquer empresa de capital aberto.

Até mesmo transparentes?

Stephanie Brun de Pontet: Ser transparente é uma escolha. Às vezes, o mercado tem mecanismos que exigem transparência, mas os mesmos parâmetros podem ser estabelecidos sem a exigência externa. Basta a família querer.

Mas não basta ser, tem de parecer, como diria César. E, hoje, ainda se percebe melhor governança em uma corporação do que em uma empresa familiar. Ou não?

Pontet: Se houver conselheiros realmente independentes, por exemplo, a percepção muda. Trabalhamos com empresas familiares justamente para ajudá-las a constituir boa estrutura de governança. O padrão ideal seria um conselho de administração cujos membros fossem independentes em sua maioria.

Nos Estados Unidos, é muito oneroso ser uma empresa de capital aberto. E há tantas exigências que, na verdade, alguns diretores talentosos não gostam de trabalhar no conselho de administração de empresas de capital aberto, por se sentirem algemados por tais regras. Eles preferem um negócio familiar que mantém o mesmo nível de transparência, mas sem a burocracia.

Ward: Outra razão pela qual as empresas acham que devem ir ao mercado, particularmente em economias emergentes e de grande crescimento, é a crença de que precisam de muito capital. Isso também nem sempre é verdade. Muitas companhias abrem o capital e acabam nem tirando proveito disso. No mundo todo, várias empresas querem voltar a ter capital fechado, pois estão ganhando muito dinheiro sem recorrer ao mercado de capitais.

Esse recuo teve a ver com a crise financeira de 2008?

Ward: Não tanto com a crise em si, mas com as regras e regulamentações que surgiram dela. Muitos estão dizendo: “É burocracia demais, é um peso, e desvia nossa atenção do que importa. Observamos mais discussões estratégicas no conselho de administração do que se estivéssemos gastando todo nosso tempo com regras e leis”. Agora, muitas empresas familiares abriram o capital por bons motivos e estão bem.

Por que ser transparente, se não há pressão externa?

Ward: Pela razão mais importante: é a coisa certa a fazer.

É uma boa razão, mas é suficiente?

Ward: É o que funciona de verdade. Se você não está fazendo porque é a coisa certa, então não está fazendo. Você deve ser transparente por acreditar que isso ajuda a empresa a tomar decisões melhores, porque dá mais confiança a seus clientes e fornecedores, porque o banco se sente melhor em relação a você. Todos os stakeholders pedem transparência. E, por sua natureza, as boas empresas querem fazer a coisa certa, do ponto de vista moral e ético. Ser socialmente responsável é o que faz sentido. Isso caracteriza o negócio familiar.

Existem empresas em que alguns membros da família são geniais, reconhecidos pelos funcionários, e outros totalmente incompetentes, mas não se toca no assunto. O que fazer?

Ward: Uma das coisas que temos feito com frequência cada vez maior é ajudar famílias a construir o que chamamos de comitê de recursos humanos. A maioria das dificuldades surge porque não há regras nem feedback. Então o que sugerimos é, primeiro, ter regras de preparação, de entrada, de qualificação etc. e, depois, construir um sistema de feedback, que é esse comitê de recursos humanos. Quando membros da família estão envolvidos com a empresa, ou querem se envolver, seja como funcionários, seja como gestores ou membros do conselho de administração, devem receber feedback desde muito cedo e continuamente.

O comitê é só para membros da família? E os demais funcionários?

Ward: O comitê é só para membros da família, sim, porque há sensibilidades específicas. Observamos, porém, que as empresas o consideram um sistema tão bom que querem estendê-lo a todos os funcionários. Mas, claro, é mais adequado quando só membros da família estão envolvidos, porque, em comparação com outros funcionários, os familiares geralmente não recebem bom feedback.

Nem nas empresas familiares mais profissionais costuma existir um sistema de feedback familiar isento?

Ward: Esse feedback é uma ideia nova. Não é inédita, no sentido de que não a inventamos sozinhos; é algo que vimos em famílias de muito sucesso e que elaboramos por acreditar que tem muito valor.

E quanto à empatia? É algo novo?

Pontet: Empatia não é algo novo como ideia, claro, mas, nesse contexto, é.

Isso não deveria ter de ser ensinado... Não é um sentimento natural?

Pontet: Algumas pessoas desenvolvem empatia naturalmente, mas muitas outras têm de se esforçar bastante para isso. Muito de nosso trabalho é desenvolver um pouco a empatia de um membro da família pelos outros, ajudá-los a se perguntar por que aquela pessoa racional, com boas intenções, comporta-se de determinado modo. Tentamos alertar as famílias para os comportamentos que variam conforme as circunstâncias.

Empatia vale para qualquer empresa...

Pontet: Exatamente. Acredito que, às vezes, em nossa cultura, temos uma mentalidade de vítima, em vez de pensarmos no papel que exercemos em um sistema e compreendermos tal papel dessa perspectiva. Sempre haverá decisões que não deixarão todos felizes. Por isso, se temos mais empatia, mais compreensão e mais conhecimento, podemos lidar melhor com nossas decepções.

Ward: Eu diria que todas as empresas precisam de empatia, mas normalmente ninguém se lembra de ser empático em relação a um irmão. Basta lembrar que é incomum, em famílias, um membro dizer a outro “obrigado”. A palavra vale mais nesse contexto.

Por que falta a empatia fraterna?

Pontet: Nas famílias, tem-se a crença de que um conhece e entende o outro. Mas não é bem assim, especialmente no caso dos que saíram de casa, fizeram faculdade, trabalharam em outro lugar. É muito difícil para um familiar aceitar mudanças de outro; a tendência é perpetuar o papel que cada um representa na família. E sentir que sua família não o entende chateia muito mais do que achar que seu colega não o entende. O custo da falta de empatia na família é maior.

Como consultores, de que maneira vocês ajudam as empresas? E como se mede isso?

Pontet: Fazemos muitos exercícios de compreensão [veja quadro acima] e comunicação com os membros das famílias e os ajudamos a conversar uns com os outros. Em família, a tendência é não conversar para evitar os conflitos. Às vezes, é preciso apenas haver alguém que crie um espaço seguro, que pegue a mão da pessoa e diga: “Vamos falar sobre isso?”.

Ward: Boa parte do trabalho é facilitar o entendimento com o espaço seguro. E, se você quer uma mensuração, uma vez me disseram como piada: “Você sabe qual é a definição de uma reunião de família de sucesso? Que haja outra reunião”.

Vocês são membros do conselho de administração de empresas familiares. Isso os ajuda na tomada de decisão?

Ward: Os conselheiros independentes ajudam tanto nas questões familiares como nos negócios. Somos bons participantes de discussões estratégicas, desafiamos as tomadas de decisão, representamos uma caixa de ressonância para o CEO, para discutir novas ideias, para se perguntar “e se...?”, para prestar atenção ao risco. Bons conselheiros externos são úteis em todos os conselhos de administração, mas, no caso específico de negócios familiares, podem integrar também o comitê de recursos humanos, que mencionei. Este é muitas vezes catalisado, instigado, criado ou encorajado pelos conselheiros independentes.

Pontet: No processo de sucessão, também é importante que o futuro presidente tenha o endosso de um conselho de administração com integrantes independentes. Se dois membros da família estão envolvidos –geralmente o CEO é o pai e o sucessor é seu filho ou filha–, cabe ao conselho a missão de avançar. Alguns terão dificuldade de deixar o passado para trás, mas, com conselheiros independentes fortes e respeitados, em quem eles podem confiar, isso fica mais fácil, sobretudo se os conselheiros já passaram pela mesma situação.

Então, essa é uma função especial.

Ward: Nunca pensei assim, mas tenho algumas ideias. Em primeiro lugar, os membros independentes do conselho de uma empresa familiar vão, com muita frequência, estimular a família a chegar a um consenso sobre sua visão, seus valores e seus objetivos para o negócio. Os conselheiros dirão: “O que os donos querem?”. Então, é preciso fazer com que os donos se unam, estabeleçam um diálogo, tenham clareza, pensem como donos e comuniquem ao conselho suas visões, seus valores, seus objetivos, suas expectativas, suas dúvidas, suas questões e assim por diante.

O segundo aspecto que é único em empresas familiares e no qual um conselheiro independente pode realmente ajudar é que os membros da família muitas vezes utilizam a visão de longo prazo como desculpa para a inabilidade de enfrentar decisões difíceis. Então, o conselho ajuda a entender a vantagem da visão de longo prazo, mas não em detrimento do curto prazo.

O mesmo vale para tradição e cultura, muito arraigadas em empresas familiares. Trata-se de uma força ou de uma fraqueza? Ambas. E os conselheiros independentes, se entenderem o conceito de negócio familiar, podem ajudar a valorizar a força, a conciliar mudança e tradição. Afinal, a empresa quer os dois: não quer se desfazer da tradição só para mudar e não quer abrir mão da mudança para manter a tradição.

“Paradoxo” está no título do livro de vocês. Por que escolheram essa palavra? É a que define melhor esse tipo tão específico de empresa?

Ward: Acho que sim, porque estamos falando de dois sistemas com objetivos distintos e se sobrepondo. É preciso entender como o negócio afeta a família e como a família afeta o negócio e esse é um ótimo ponto de partida.

Também acreditamos, porém, que um excelente ponto de partida é um familiar entender o outro, ou seja, a empatia, compreendendo como o negócio afeta cada membro da família e quais as expectativas que gera em cada um.

Saiba mais sobre Ward e de Pontet

John Ward é uma das maiores autoridades mundiais em gestão de empresas familiares. Codiretor e professor do Center for Family Enterprises, da Kellogg School of Management, da Northwestern University, é sócio da firma de consultoria The Family Business Consulting Group e autor de diversos livros sobre o tema, entre eles A empresa familiar como paradoxo, em parceria com Amy Schuman e Stacy Stutz (ed. Bookmark).

Stephanie Brun de Pontet é sócia de Ward no The Family Business Consulting Group. Seu trabalho como consultora foca especialmente transições-chave em empresas familiares, atuando com equipes de irmãos e em programas de treinamento para gerações futuras e melhores práticas.

Brasileiros estão avançados

Entre os membros de empresas familiares que participaram do Special Management Program HSM – Family Business com John Ward e Stephanie Brun de Pontet, 36% eram da geração fundadora, 37% da segunda geração, 16% da terceira e 11% da quarta ou mais. Os participantes responderam, confidencialmente, a várias perguntas propostas pelos consultores. Veja alguns destaques:

Stephanie Brun de Pontet
Stephanie Brun de Pontet

Sucessão

• Para a nova geração, o principal desafio para o sucesso da continuidade é a geração sênior abrir mão do controle. Assessores e diretores que não fazem parte da família concordam com isso de maneira ainda mais contundente.

• O relacionamento entre irmãos com diferentes estilos de gestão foi apontado como o segundo maior desafio das empresas familiares nacionais (40% dos participantes o mencionaram), seguido da rivalidade entre eles (25%).

Governança

• Assim como na pesquisa global realizada pelos consultores, metade das famílias que deram início a uma Constituição Familiar está satisfeita com os resultados. A boa surpresa é que 57% já experimentaram isso.

• Também de modo parecido com a pesquisa global, cerca de um terço das empresas familiares conta com três ou mais conselheiros independentes, externos, e 63% delas acham isso extremamente valioso.

Futuro

• Aproximadamente metade dos participantes diz ser provável que haja um investidor privado em seu negócio familiar.

• Para 51%, abrir o capital ainda é inimaginável.

• A experiência de resgatar as ações de um acionista membro da família foi vivida por 24%. E 45% declararam não dispôr de uma política bem definida para lidar com essa situação, que é praticamente inevitável.

Surpresas

As descobertas mais surpreendentes foram:

• 65% dos pesquisados participam de encontros familiares oficiais, a maioria dos quais inclui cursos de negócios para os membros da família, o que reflete uma preocupação real com a qualidade da gestão; • quase um terço das companhias afirma selecionar os integrantes familiares do conselho apenas por mérito;

• o percentual de empresas com conselho de administração independente foi muito maior do que o encontrado nos EUA.