Há algo de novo no universo das empresas familiares: o comportamento de seus herdeiros. Cada vez mais, as novas gerações dessas companhias se empenham em se qualificar para merecer a herança, como se disputassem postos com os executivos profissionais. Para isso, tratam de desenvolver habilidades técnicas e interpessoais, seja em cursos, seja trabalhando em outras organizações, seja fundando e gerenciando startups.

Essa é a constatação da pesquisa Next Gen 2016, da PwC, realizada em 31 países, incluindo o Brasil, onde cerca de 80% das companhias são familiares. O levantamento mostra que 92% dos brasileiros entrevistados que ainda não gerenciam suas empresas familiares querem fazer algo especial com elas deixando sua marca. Isso supera o resultado global, em que essa expectativa é de 88%. A maior parte dos herdeiros brasileiros pretende trabalhar na organização da família mesmo.

Carlos Mendonça, sócio da PwC Brasil
Carlos Mendonça, sócio da PwC Brasil

Diante dessas novas expectativas e atitudes dos herdeiros, a PwC, que tem uma área especializada em empresas familiares, decidiu somar a suas metodologias a abordagem do instituto de governança familiar alemão Intes. Começa com a própria família construindo, de maneira participativa, o que é chamado de “Agenda do Dono”, com as regras e normas que valerão para todos. A elaboração participativa não apenas reforça o senso de dono e o empoderamento de cada membro da família; ela satisfaz particularmente os jovens, que com muita frequência se sentem alijados das decisões de negócios. 

“Em nosso entendimento, a Agenda do Dono é muito importante porque acaba influenciando todas as decisões da empresa, que assim pode ser guiada pela história, pela cultura e pelos valores de toda a família”, afirma Carlos Mendonça, sócio da PwC Brasil e líder da área de consultoria a empresas familiares. 

Metodologia alemã

A PwC adquiriu o Intes há três anos e a unidade brasileira vem aplicando seu método desde 2015, em um número crescente de empresas. A peculiaridade da abordagem é que foi desenvolvida por um herdeiro. O fundador do Intes, Peter May, baseou-se na própria experiência de membro de uma nova geração para elaborá-la. 

O que deve integrar a Agenda do Dono pode ser visualizado na figura de uma casa com vários cômodos, e estes definem como se organiza a família e como se profissionaliza a empresa.

Mary Nicoliello, diretora da PwC Brasil, ressalta que o protocolo da família, na base da figura, é o acordo moral que garante a validade das regras e normas combinadas pela família empresária.

A Agenda do Dono satisfaz os jovens, que aprovam o processo participativo

Passo a passo

A PwC Brasil aplica o método do Intes em conjunto com outras abordagens. Um processo de consultoria típico nessa nova combinação pode começar com a discussão e a definição – totalmente participativa – de quem são os membros da família, para quem será transferida a propriedade, quais as implicações e o papel de cada um na sociedade. “Colocamos todas as questões na mesa, para que a família faça sua reflexão”, diz Nicoliello.

Mary Nicoliello, diretora da PwC
Mary Nicoliello, diretora da PwC

Em seguida, o foco é a gestão do legado, quando são identificados os valores, a identidade e a cultura da família – nessa etapa, elos familiares tendem a ser fortalecidos.

O terceiro passo é buscar respostas sobre o modelo de negócio, sob a ótica da estratégia familiar e de seus valores – econômicos e emocionais.

“É aqui que está a base para a organização do portfólio de negócios da empresa”, explica a especialista.

Só depois disso, sobre uma base estratégica sólida, começa a ser desenhada a governança corporativa. Há oito Ps, conforme definidos pelo especialista em family business José Paschoal Rossetti, a serem definidos nesse ponto: propriedade, princípios, propósitos, poder, papéis, práticas, pessoas e perenidade. Perguntas próprias dessa fase são: “Vamos montar um conselho de administração?”, “Haverá um conselho de sócios? Como funcionará?”, “A empresa terá CEO? Se sim, com qual perfil?”.

Entra em cena, então, a governança familiar, sistema responsável pela interface entre a família e os negócios. As conversas passam a girar em torno de atividades que contribuam para a coesão familiar, da formação dos sucessores, de como garantir que o legado passe de geração para geração a fim de que se preserve a história.

Quase no final, são detalhados as regras, normas e acordos, e tudo é registrado formalmente. Alguns pontos fundamentais nesse aspecto são o regime de casamento de cada membro da família e as formas de preservação do patrimônio e de geração de valor. Para terminar, é elaborado o protocolo da família, do qual constarão as regras definidas em conjunto.

A PwC também ajuda a família a criar uma trilha, por faixa etária e por foco de interesse, para o desenvolvimento das novas gerações em determinadas áreas. Se com os herdeiros de até 14 anos de idade o importante é reforçar os laços e valores da família, para os de 25 anos a sugestão de cursos adicionais e de empresas onde trabalhar é o que mais conta.


Carlos Mendonça, sócio da PwC Brasil, e Mary Nicoliello, diretora, ressaltam a importância da participação da nova geração no desenvolvimento da governança

O Grupo Gentil 

Quem já participou da elaboração de uma Agenda do Dono foi o grupo potiguar Gentil Negócios. Com faturamento anual na casa dos R$ 200 milhões e 600 funcionários diretos, atua em seis estados nordestinos com franquias de marcas como O Boticário e Swarovski.  

O grupo é comandado, há dois anos, pela segunda geração, mas todos – do fundador Antonio a seus seis netos – foram ativos na montagem da Agenda do Dono. Como aponta a pesquisa da PwC, três desses netos (os que já atingiram a faixa etária dos 20 anos) vêm se preparando com afinco para a gestão: Filipi já trabalha na empresa implantando o projeto de ERP, Rafael estuda administração em São Paulo e Daniel trabalha na PwC Brasil, também em São Paulo. “Resolvi atuar fora da empresa da família para me capacitar profissionalmente, e deve ser assim por mais uns cinco anos, conforme o planejamento”, conta Daniel. 

O que a terceira geração pensa da Agenda do Dono e do novo método? “Percebemos que o método quer, de fato, empoderar toda a família, para nos deixar todos alinhados em torno do mesmo propósito”, responde Daniel. Ele confirma que, na elaboração da Agenda do Dono, os membros mais jovens puderam fazer contribuições relevantes no quesito de estruturação e melhores práticas. “Acredito que essa valorização da família como um todo será fundamental para a perpetuidade do negócio.” 

As duas primeiras gerações da família Gentil: da esq. p/ a dir., o fundador Antonio, Glícia (filha), Marluce (esposa), Glênia (filha) e Glauber (filho) – a segunda geração está há dois anos no comando da empresa e Antonio continua envolvido.
As duas primeiras gerações da família Gentil: da esq. p/ a dir., o fundador Antonio, Glícia (filha), Marluce (esposa), Glênia (filha) e Glauber (filho) – a segunda geração está há dois anos no comando da empresa e Antonio continua envolvido.

Antecipar é preciso

Como Mendonça enfatiza, todas as regras do empreendimento familiar devem preferencialmente ser criadas antes que sejam necessárias – enquanto as relações estão tranquilas e são poucos os parentes envolvidos. A antecedência aumenta bastante as chances de sucesso. “O trabalho desenvolvido nas áreas de governança e sucessão não nos garante imunidade, mas certamente estamos tomando boas vacinas contra conflitos e disputas naturais”, confirma Glauber Gentil, atual CEO da Gentil Negócios. 

Infelizmente, a maioria das famílias empresárias ainda não se antecipa como os Gentil. Para Mendonça, é o que explica o fato de só 4% das companhias familiares chegarem à quarta geração. O dito popular “Pai rico, filho nobre, neto pobre” existe em quase todos os idiomas do mundo.

Daniel Gentil acrescenta que o preparo da futura geração também deve acontecer o mais cedo possível. Ele já tem um planejamento feito até 2020 e gostaria de tê-lo iniciado ainda antes, quando criança. 

Sopro inovador

A saudável postura que se vê na nova geração de herdeiros de negócios familiares revelada na pesquisa PwC ainda não mudou os principais problemas dessas companhias, dos mandatos muito longos (fruto do apego ao poder) à dificuldade na decisão entre manter a tradição dos primórdios e inovar.

Porém a dedicação da geração mais jovem à qualificação e seu novo envolvimento com as empresas podem garantir, no longo prazo, o sopro inovador que talvez falte a esse tipo de organização.