Nada de cowboys viris ou yuppies descolados. As propagandas de cigarro marcaram época na publicidade, mas desapareceram a partir da virada do milênio, em meio às proibições impostas pelas leis antifumo. No Brasil, aliás, a legislação vetou qualquer tipo de divulgação de produtos tabagistas em 2014. Com isso, o único meio de chamar a atenção do consumidor passou a ser a própria embalagem dos cigarros, disposta nos displays de venda. A restrição levou as fabricantes a dedicar um cuidado cada vez maior à estética das caixas e dos maços, agregando cores, texturas e materiais para atrair o desejo do público.

Maior fabricante de cigarros do Brasil, a Souza Cruz logo entendeu que a execução dessa nova estratégia acarretaria investimentos constantes em sua gráfica própria, a PD Embalagens Gráficas, instalada em Cachoeirinha (RS), o que fugia de seu core business. Por isso, a empresa iniciou uma pesquisa de parceiros que pudessem suprir essa necessidade, até que, em 2015, encontrou a australiana Amcor – um dos principais players mundiais do ramo de embalagens –, vendeu os ativos da PD para ela e assinou um contrato de compra de seus serviços, não exclusivo, por dez anos.

O relacionamento com o novo elo australiano do supply chain vai além da relação trivial entre cliente e fornecedor; ele envolve, também, a decisão compartilhada de investimentos. “A gráfica segue nos abastecendo, e as embalagens ganharam um nível de sofisticação maior, obedecendo a conceitos globais”, explica Valdoberto Vidal, head de supply chain da Souza Cruz. (E a Amcor, por sua vez, ganhou um parceiro de peso e atrelou sua nova operação a uma conta com faturamento estimado em R$ 200 milhões por ano.)

O case da Souza Cruz é um ótimo exemplo do supply chain management (SCM) em ação. Muitas vezes confundido com a operação logística, o SCM – também chamado de gestão integrada da cadeia de fornecimento – se caracteriza como uma estratégia sistêmica, direcionada à melhoria da competitividade das empresas por meio de seus fornecedores. O conceito alinha diversas organizações da cadeia por meio de práticas projetadas para reduzir custos, obter ganhos de produtividade e, em consequência, maximizar a satisfação dos clientes.

Embora já exista há décadas na Europa e nos Estados Unidos, o SCM alavanca o desafio de executar estratégias no século 21 como poucas ferramentas, justamente por lidar com um dos stakeholders mais vitais a uma empresa. Organizações do Brasil perceberam sua vulnerabilidade quando, depois de se afastar de fornecedores domésticos nos anos recentes em busca dos internacionais, tiveram de se voltar para dentro com a mudança cambial e encontraram players despreparados.

Para facilitar a execução, essa abordagem trabalha com conceitos-chave como parceria, colaboração, eficiência e, claro, tecnologia da informação.

Todos do mesmo lado

A otimização de processos proposta pelo SCM interliga os mais diversos estágios envolvidos no atendimento de um pedido. O detalhe é que ele acontece por meio de um fluxo duplo. O primeiro se origina no cliente e passa por todos os elos da cadeia de produção até chegar à matéria-prima, abastecendo cada elo com informações de demanda. Já a segunda via avança no sentido inverso e responde a essas requisições com produtos e serviços.

O início de um fluxo de SCM pode acontecer, por exemplo, quando o caixa do supermercado pergunta ao cliente se faltou algum produto ou serviço na loja. Informada dessa demanda, a gestão aplica medidas que podem movimentar departamentos internos, fábricas e fornecedores diversos, incluindo transportadores e distribuidores – tudo para suprir essa necessidade. “É uma conversa entre toda a cadeia, utilizando indicadores de resultado”, define Renato Aguilar, coordenador dos cursos de engenharia do Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais (Ibmec-Minas Gerais).

Nesse cenário, um dos segredos para que o SCM contribua para a boa execução é o mapeamento geral dos processos produtivos. É com essa prática que os gestores detectam pontos problemáticos ou dissonantes de uma cadeia.

E a velha máxima de que uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco nunca foi tão verdadeira. A carência de um fornecedor ou distribuidor específico pode implicar dificuldades para o negócio em algum momento. Por isso, zelar pela qualidade equânime entre todos os players envolvidos na cadeia produtiva passa a ser responsabilidade da empresa que centraliza essa teia.

De certa maneira, uma das diretrizes do supply chain é ampliar o raio de influência da empresa-mãe sobre a cadeia, contribuindo para atingir a excelência de serviço em todos os níveis. E a uniformização dos padrões de desempenho só é possível pela mudança do paradigma de relacionamento com os parceiros. Aqui, o caráter competitivo entre as partes deve sair de cena. Nenhum dos lados precisa perder para que o outro ganhe. A ordem, agora, é cooperação máxima e alinhamento.

Assim, o SCM expande o duelo empresa-empresa para uma competição mais ampla, entre cadeias produtivas. “É supply chain versus supply chain”, confirma Vidal. A Souza Cruz, aliás, já utilizava práticas de SCM muito antes de a nomenclatura existir, tratando de dar suporte permanente a seus fornecedores.

Elos fortalecidos 

A Souza Cruz fabrica seis das dez marcas de cigarros mais vendidas no Brasil e atende 265 mil clientes de varejo, espalhados pelos mais de 5 mil municípios do País. O portfólio de negócios ainda inclui a exportação anual de 109 mil toneladas de tabaco para os cinco continentes.

O detalhe, porém, é que a empresa faz tudo isso sem possuir um único metro quadrado de plantação de fumo. Os insumos da Souza Cruz são providos por cerca de 45 mil fornecedores – todos produtores rurais familiares. Essas propriedades recebem assistência permanente da fabricante, visando a otimização dos processos e a melhoria da matéria-prima oferecida.

Algumas famílias agricultoras são parceiras da Souza Cruz há cinco gerações, e a longevidade indica o caráter benéfico da relação proposta pela empresa. “Podemos ter um fornecedor há 50 anos, mas ele precisa evoluir sempre”, garante Vidal. Qualificar os parceiros é mesmo um item fundamental na estratégia de supply chain. Não à toa, algumas das mais competitivas empresas do País realizam verdadeiros vestibulares para escolher e manter seus fornecedores. Os critérios de seleção e classificação não incluem só custos; embutem níveis de uso, agilidade, confiabilidade e flexibilidade no atendimento de demandas.

De fato, em certos casos, entrar para o rol de fornecedores de um player experimentado em supply chain pode ser semelhante a cursar uma escola de negócios. Isso porque a ideia da avaliação não é apenas criar um funil de excelência. O conceito de parceria leva as empresas que encabeçam a cadeia a promover meluhorias constantes nos fornecedores, redundando em vantagens e ganhos para ambos os lados.

Os avanços incluem, por exemplo, o desenvolvimento do capital humano e o compartilhamento de tecnologias e inovações. “Temos engenheiros trabalhando com nossos fornecedores para cortar seus custos, otimizar seus processos e reduzir gastos em água e energia”, cita José Galló, presidente da Lojas Renner.

A Randon é outra companhia que adota essa postura, colocando o corte de custos como meta. Líder no segmento de implementos rodoviários na América Latina, o conglomerado de Caxias do Sul (RS) oferece workshops internos e externos, na sede de cada fornecedor, apresentando orientações sobre o tema.

Não raro, parte dos percentuais economizados pelos parceiros é repassada à Randon – e contribui para a competitividade dos produtos. “Trabalhamos sempre a quatro mãos, buscando inovação e melhoria de desempenho”, explica Norberto Fabris, diretor corporativo da Randon Implementos e Participações. É o elo mais forte auxiliando o mais fraco.

Norberto Fabris, da Randon
Norberto Fabris, da Randon

A Randon também faz auditorias permanentes nos fornecedores. Nessas operações, a empresa avalia processos e classifica os parceiros de acordo com o Índice Geral de Desenvolvimento de Fornecedores (IGDF), que leva em consideração parâmetros como preço, atendimento, entregas, pontualidade e comprometimento. O monitoramento de performance faz parte do chamado supplier relationship management (SRM) – na prática, a gestão de relacionamento com os fornecedores. A estratégia de SRM tem o intuito de racionalizar e trazer eficácia à interação com esses players.

Menos é mais

O SRM costuma se tornar um grande desafio para empresas com cadeia de fornecimento muito ampla. Em negócios cujos insumos e componentes são originados por uma malha mais extensa de fornecedores e subfornecedores, como no caso das montadoras de automóveis, a saída é concentrar o espectro de influência. 

Foi o que a Randon começou a fazer em 2015. Até então, cada empresa pertencente ao conglomerado possuía setores independentes de compras, salvo exceções. No ano passado, porém, a Randon instituiu um departamento único de compras corporativas, reunindo cinco de suas oito empresas – Randon Implementos e Randon Veículos (uma só) e as fabricantes de autopeças Castertech, Master, Fras-le e Suspensys. A estratégia reduziu o número de fornecedores necessários e aumentou a eficiência. “Adquirindo volumes maiores, conseguimos vantagens na negociação”, observa Fabris.

Eduardo Multari, da Febracorp
Eduardo Multari, da Febracorp

Enxugar o número de parceiros é vital para o estreitamento de laços proposto pelo SCM. “É semelhante a um casamento: você precisa conhecer muito bem a outra parte para crescer com ela”, compara Eduardo Multari, conselheiro e professor da Febracorp University, instituição paulista que oferece cursos de SCM, compras e inteligência de mercado.

O nível de interação entre empresa e fornecedor pode incluir até mesmo o acesso a informações restritas. A Boeing, fabricante de jatos e aviões norte-americana, faz isso. Ela abre seus planos de produção a parceiros para facilitar o planejamento da cadeia e, assim, agilizar o atendimento dos pedidos.

Outra medida que ajuda a dar celeridade aos processos é o compartilhamento de estoque. Especializada na fabricação de roupas infantis, a Brandili implementou essa política há cerca de dois anos, associada a um modelo de compras de longo prazo. “Fechamos contratos por um ano e vamos pedindo reposições a cada três dias”, explica Sigfrid Hornburg, gestor de logística da empresa. O requerimento de insumos é orientado pelo sistema Kanban, método japonês que facilita a sincronização entre o andamento da produção e a capacidade do estoque.

Sigfrid Hornburg, da Brandili
Sigfrid Hornburg, da Brandili

Como a maior parte dos fornecedores fica na região de Apiúna (SC), onde está localizada a planta da marca, os prazos de entrega foram encurtados. Com esse posicionamento, a Brandili conseguiu reduzir 70% de seu estoque e hoje mantém apenas os insumos necessários para a produção, garantindo altos índices de eficiência.

A logística da Brandili também ganhou vantagens tecnológicas importantes. Por meio de uma parceria com a consultoria Imam e a empresa de tecnologia espanhola Ulma Handling Systems, a fabricante catarinense automatizou a operação de seu centro de distribuição em 2014. A expedição passou a ser feita por esteiras mecanizadas e sistemas de separação de pedidos, integrados ao warehouse management system (WMS), tecnologia de mecanização de armazéns que usa recursos como Wi-Fi e códigos de barras, prescindindo da intervenção humana na maioria das etapas. “Toda a movimentação do estoque é com robôs”, diz Hornburg. 

Entrega inteligente

A gestão de supply chain também prega a otimização da distribuição – e isso pode ir muito além da agilidade e do simples corte de custos

Tão importantes quanto o fornecimento e o estoque, o transporte e a distribuição surgem no outro extremo da cadeia de SCM. A escolha de modelos para essas etapas respeita o mesmo conceito de colaboração e busca de eficiência das demais fases.

O planejamento de distribuição da Brandili demonstra isso. A marca de roupas infantis catarinense terceirizou suas entregas com transportadoras de ponta da região e realizou investimentos conjuntos nas frotas dos parceiros. Um exemplo é a instalação do sistema de monitoramento CMS, que possibilita a visualização de imagens das cargas transportadas em tempo real, pela internet. 

A Brandili também criou um método de entrega baseado em ondas de pedidos, agrupando as demandas por região. Com isso, consegue atender a até 550 pedidos de uma única vez. “Todo o planejamento de transporte é nosso. A transportadora apenas executa”, explica Sigfrid Hornburg. As políticas de distribuição reduziram em 30% os gastos da companhia com frete.

Valdoberto Vidal, da Souza Cruz: agora a competição é entre supply chains
Valdoberto Vidal, da Souza Cruz: agora a competição é entre supply chains

Já a Souza Cruz foi ainda mais longe e passou a explorar a própria rede logística como fonte de receita. Há dez anos, a fabricante de cigarros usa sua malha de transporte para entregar produtos de outras empresas, entre elas Bic, Procter & Gamble e Red Bull. “As empresas têm seus distribuidores, mas se beneficiam da capilaridade de nossa rede para chegar a lugares onde o acesso é mais difícil”, afirma Valdoberto Vidal. O negócio é parte do conceito seed to smoke (da semente à fumaça), que garante à Souza Cruz o controle total sobre a cadeia de fornecimento.

É preciso avançar

O supply chain ganha importância no Brasil com a ajuda das startups, porém ainda é “coisa de grande empresa“ 

O Brasil tem seu desafio de execução aumentado por ainda estar em um estágio inicial da gestão de supply chain, como afirma Renato Aguilar, do Ibmec. Essa ferramenta começou a ser usada aqui na década de 1990, mas passou a ganhar espaço mesmo apenas nos últimos anos – e ainda segue restrita ao nível das grandes organizações, sobretudo as multinacionais, que incorporam experiências mais maduras vindas de suas matrizes no exterior. “O supply chain exige recursos, e os pequenos produtores não têm estofo para isso”, justifica Renaud Barbosa, coordenador do MBA em logística e supply chain management da FGV.

Enquanto ainda não conseguem assumir o protagonismo, as companhias de menor porte se beneficiam da integração a uma cadeia produtiva. As startups ganham relevância nesse ponto. Por serem mais ágeis e maleáveis, elas podem oferecer soluções customizadas às necessidades específicas de uma rede de SCM.

A melhor adaptação ao ritmo das inovações tecnológicas é outro item favorável a essas empresas. “A tecnologia da informação não pode ser responsabilidade de apenas um elo. Toda a rede de SCM precisa dessa plataforma”, salienta Christian Titze, diretor de pesquisas da consultoria Gartner. O alinhamento de uma cadeia de fornecimento está muito atrelado ao emprego de recursos de integração das informações gerenciais, entre eles as plataformas de enterprise resourcing planning (ERP), e de compartilhamento de dados, como os sistemas alicerçados na computação em nuvem.

Vencida a barreira tecnológica, o supply chain ainda pode enfrentar entraves de ordem cultural. A nova mentalidade exigida por essa estratégia tem de estar nos níveis superiores de governança e nas funções de operação. É o caso do setor de compras, uma das áreas centrais do SCM. “A maior parte das empresas brasileiras não entende a área de compras como algo estratégico”, aponta Eduardo Multari, conselheiro e professor da Febracorp University, que também trabalha como líder de procurement da Pfizer para a região sul da América Latina. Os profissionais desse segmento não costumam ter formação específica e, em geral, se limitam a realizar cotações de preços. 

No SCM, a atividade de um comprador precisa levar em conta diferentes aspectos na definição de sua política de compras, como tendências de mercado, modelos de fornecimento, monitoramento, desempenho dos parceiros. O supply chain exige compradores proativos e com pensamento estratégico.