Imagine um mundo de 9 bilhões de pessoas, todas elas com água limpa, alimentos nutritivos, moradia acessível, educação personalizada, assistência médica de primeira linha, energia à vontade e não poluente. Essa é a visão da era da abundância, período de transformação radical em que a tecnologia poderá elevar substancialmente a qualidade de vida de todos os habitantes do planeta. Dentro de uma geração, seremos capazes de fornecer a todos bens e serviços antes reservados a uma minoria rica. Apesar de não ser fácil defender isso em um momento de pessimismo mundial, eu o defendo convicto, porque, pela primeira vez na história, nossas capacidades começaram a alcançar nossas ambições.

O fim do modelo da escassez e as quatro forças

No final do século 18, o economista inglês Thomas Robert Malthus percebeu que, enquanto a produção de alimentos se expandia linearmente, a população crescia exponencialmente. Por causa disso, convenceu-se de que chegaria um ponto no tempo em que excederíamos nossa capacidade de nos alimentarmos. Em 1972, um grupo de pensadores conhecido como o Clube de Roma publicou o livro Os Limites do Crescimento, em que comparou as taxas mundiais de crescimento populacional com as taxas de consumo de recursos globais. A mensagem foi simples: nossos recursos estão se esgotando, e nosso tempo também.

Mais de quatro décadas se passaram e o modelo da escassez só tem confirmações: um em cada quatro mamíferos está ameaçado de extinção, 90% dos grandes peixes já desapareceram, nossos lençóis aquíferos começam a secar, o solo está ficando salgado demais para a produção agrícola, o petróleo vem se esgotando e, no tempo decorrido para ler esta frase, uma criança morrerá de fome.

A humanidade já consome 30% a mais dos recursos naturais da Terra do que poderíamos repor. Se todos neste planeta quisessem viver com o estilo de vida do europeu médio, precisaríamos de três planetas em termos de recursos e, com o estilo de um norte-americano médio, cinco planetas.

Agora, pare e reflita: um guerreiro africano Masai com um telefone celular dispõe de mais recursos de telefonia móvel do que o presidente dos Estados Unidos 25 anos atrás. E, se tiver um smartphone com acesso ao Google, terá mais acesso às informações do que o presidente apenas 15 anos atrás. A World Wide Web de comunicações e informações instantâneas e de baixo custo nos faz viver em um mundo de abundância de informações e comunicações, certo?

E as tecnologias não são os únicos agentes de mudança em ação; três forças adicionais estão atuando, cada uma alavancada pelo poder de tecnologias em crescimento exponencial, cada uma com um grande potencial de produção de abundância: o Faça-Você-Mesmo, os tecnofilantropos e o bilhão ascendente.

O movimento Faça-Você-Mesmo (conhecido pela sigla inglesa DIY, de Do-It-Yourself), fermentado nos últimos 50 anos, começou a aumentar. No mundo atual, o alcance dos inventores de fundo de quintal se estendeu bem além de carros personalizados e computadores feitos em casa, e agora chega a áreas antes misteriosas, como genética e robótica. Hoje em dia pequenos grupos de adeptos do DIY, bastante motivados, conseguem realizar o que antes era monopólio das grandes corporações e de governos. Craig Venter desafiou o poderoso governo norte-americano na corrida para sequenciar o genoma humano. O poder recém-descoberto desses ousados inovadores é a segunda dessas forças.

A terceira é o dinheiro – um monte de dinheiro – sendo gasto de uma forma bem específica. A revolução da alta tecnologia criou uma espécie inteiramente nova de tecnofilantropos ricos que estão usando suas fortunas para solucionar desafios globais relacionados à abundância.

Bill Gates trava uma cruzada contra a malária, Mark Zuckerberg vem trabalhando para reinventar a educação, enquanto Pierre e Pam Omidyar se concentram em levar eletricidade ao mundo em desenvolvimento. E essa lista prossegue indefinidamente. Em seu conjunto, nosso segundo propulsor é uma força tecnofilantrópica sem igual na história.

Finalmente, existem os mais pobres entre os pobres, o bilhão mais carente, que estão enfim se plugando na economia global e tendem a se tornar o que denomino “o bilhão ascendente”. A criação de uma rede de transportes mundial foi o passo inicial nesse caminho, mas é a combinação de internet, microfinanças e tecnologia de comunicação sem fio que está transformando os mais pobres dentre os pobres em uma força de mercado emergente.

Agindo de maneira isolada, cada uma dessas forças possui um enorme potencial. Atuando juntas, porém, o antes inimaginável se torna agora possível.

Então, o que é possível?

Força nº 1: Tecnologias

O avanço de tecnologias transformacionais novas, de crescimento exponencial, é o que menos requer explicação. Todos os dias ouvimos falar de novidades envolvendo sistemas computacionais cognitivos, redes e sensores, inteligência artificial, robótica, biotecnologia, bioinformática, impressão 3D, nanotecnologia, interface homem-máquina, engenharia biomédica etc.

Não é difícil imaginar que tudo isso logo permitirá que a vasta maioria da humanidade experimente aquilo a que apenas os mais abastados hoje têm acesso.

Força nº 2: Faça-você-mesmo

A comunidade online sem fins lucrativos chamada DIY Drones possui quase 82 mil membros. Com trabalho voluntário, alguns brinquedos e umas centenas de dólares em peças sobressalentes, ela está superando gigantes da indústria aeroespacial, fazendo aviões teleguiados com 90% das funcionalidades dos modelos comerciais e com custos cem vezes menores, que podem enviar suprimentos para locais como Bangladesh, onde as monções alagam as estradas, ou Botsuana, onde estradas sequer existem.

O mesmo movimento DIY está acontecendo em diversas áreas, como a engenharia genética e os programas sociais. Para ter uma ideia de aonde pode chegar, vale a pena contar a história de Stewart Brand, biólogo formado por Stanford que viveu o ápice da revolução comunitária na história dos Estados Unidos, quando 10 milhões de norte-americanos voltaram para o campo e aprenderam que o sucesso agrário depende das capacidades individuais de fazerem-eles-mesmos.

Pensando em ajudar os amigos que migravam, Brand publicou o Catálogo da Terra Inteira (WEC, na sigla em inglês), com a agora lendária declaração de propósito “somos como deuses e podemos ser bons nisso também”, oferecendo uma seleção de ferramentas e ideias para facilitar exatamente esse tipo de transformação pessoal.

“Stewart sozinho é responsável pela aceitação do computador pessoal pela cultura norte-americana”, diz Kevin Kelly, que foi editor do WEC antes de fundar a revista Wired. Os computadores eram vistos com desconfiança até que Brand entendeu o seguinte: se aquelas ferramentas se tornassem pessoais, transformariam o mundo em um lugar onde as pessoas seriam deuses.

Foi o casamento da autossuficiência com a tecnologia, promovido por Brand, que ajudou a moldar o inovador DIY como uma força pró-abundância. Seu catálogo foi importante também por outros dois outros princípios adotados: a ideia de que “as informações querem ser livres” (o que mais tarde viria a ser conhecido como ética do hacker) e a noção então estranha de que os negócios poderiam ser uma força positiva.

Nos anos 1970, surgiu o Homebrew Computer Club, um grupo de aficionados por tecnologia que se reunia para trocar circuitos e histórias, baseado nos conceitos DIY. Entre seus primeiros membros estavam hackers famosos e os fundadores da Apple, Steve Wozniak e Steve Jobs. O Homebrew Computer Club estava fadado a mudar o mundo, assim como o DIY mudará agora.

Força nº 3: Tecnofilantropos

Há uma nova estirpe de filantropos: os tecnofilantropos, jovens ricos, idealistas, munidos de um iPad, que se preocupam com o mundo – o mundo inteiro – de uma forma totalmente nova. De onde surgiu essa estirpe, o que a distingue e por que constitui uma força pró-abundância?

Possivelmente surgiu com Jeff Skoll, o primeiro presidente do eBay, que vendeu sua participação no eBay por US$ 2 bilhões e criou uma fundação para buscar uma “visão de um mundo sustentável de paz e prosperidade” – a Fundação Skoll.

Os tecnofilantropos, que em geral atuam por meio de empreendedores sociais ou investindo em empresas socialmente responsáveis, focam problemas globais, mais do que locais, ao contrário dos filantropos tradicionais. Eles também acreditam poder prestar um serviço maior e melhor do que o de seus predecessores, praticando uma filantropia eficaz. Um de seus diferenciais é querer participar pessoalmente dos projetos financiados, seja sugerindo gestores, seja fiscalizando os trabalhos – em vez de se contentarem em fazer doações. O resultado? Com uso eficiente, o capital destinado à filantropia cresce mais rápido – está estimado em US$ 500 bilhões por volta de 2020.

A tecnofilantropia ganhou impulso importante em 2010, quando Bill Gates e Warren Buffett, os dois homens mais ricos do mundo, anunciaram o “Giving Pledge” (Promessa de Doar), pedindo aos bilionários dos EUA que oferecessem metade de sua riqueza para grupos filantrópicos em vida ou quando morressem. Em 2016, 120 deles já haviam aderido à causa.

O potencial é grande. Primeiro, estima-se que o mundo tenha mais de mil bilionários (uns arriscam a dizer 2 mil, já que muitos escondem a riqueza). Segundo, a maioria desses filantropos ainda é jovem; está apenas começando sua jornada. Terceiro, algumas das pessoas mais inteligentes do planeta estão, possivelmente pela primeira vez, concentrando suas energias em resolver esses graves problemas mundiais.

Os tecnofilantropos atuam por meio de empreendedores sociais e se envolvem nos projetos

Força nº 4: Bilhão ascendente

Em 2002, C.K. Prahalad e Gary Hart defenderam uma ideia simples: os 4 bilhões de pessoas que ocupavam o estrato inferior da pirâmide econômica, o chamado bilhão inferior, haviam se tornado um mercado econômico viável.

A base da pirâmide, como o conceito ficou conhecido, é um mercado incomum: a maioria dos consumidores vive com menos de US$ 2 ao dia, mas seu poder de compra agregado oferece possibilidades extremamente rentáveis. Inclusive porque, para competir em mercados da base da pirâmide, uma nova onda de inovação é necessária.

O mundo em desenvolvimento é o incubador perfeito para as tecnologias que são as chaves para o crescimento sustentável na era da abundância. Como as tecnologias novas – energia renovável, geração distribuída, biomateriais, purificação da água no local de consumo, TI wireless, agricultura sustentável e nanotecnologia – costumam ter um caráter “perturbador”, ameaçando os beneficiários dos mercados existentes, a base da pirâmide tende a ser o segmento mais apropriado para sua comercialização inicial.

Já vimos o impacto da base da pirâmide na atividade bancária. Como existem 2,7 bilhões de pessoas no mundo em desenvolvimento sem acesso a serviços financeiros, entrou em cena nesses mercados o banco móvel e viu um crescimento exponencial em poucos anos. O serviço de transferência de dinheiro M-Pesa, lançado no Quênia em 2007 pela Safaricom, conquistou 20 mil clientes no primeiro mês. Quatro meses depois, eram 150 mil. Quatro anos mais tarde, 13 milhões.

Benefício no longo prazo

O mundo da abundância é um dos cenários possíveis, mas não está garantido. Além das quatro forças, ele precisará de um monte de energia, da aceleração da taxa de inovação, do aumento da colaboração global, da expansão das ideias do que é possível fazer.

Porém dois fenômenos em andamento, a desmonetização (redução radical dos custos) e a desmaterialização (redução radical do tamanho dos produtos que usamos), confirmam a tendência à abundância no longo prazo, porque fazem com que produtos e serviços antes reservados à minoria rica estejam disponíveis a todos que tenham um smartphone – quase todos os habitantes do planeta. Uma das definições de abundância é a disponibilidade generalizada de produtos e serviços, afinal.

Peter Diamandis é cofundador da Singularity University